Diante da triste notícia da morte do papa Francisco, me lembrei da história de que a estátua do Cristo Redentor quase não saiu do papel, há mais de 100 anos. Se dependêssemos de Rodrigo Octavio, consultor-geral da República em 1921, não teríamos os famosos braços abertos sobre a Guanabara, nem as belas canções que o cantaram, tampouco poesias em sua homenagem ou as incontáveis orações rezadas aos seus pés.
A pedido do ministro da Fazenda à época, o jurista foi chamado a opinar a respeito da constitucionalidade da construção do Cristo Redentor no alto do morro do Corcovado. O parecer (encaminhado a mim pelo nobre professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy) se fundou na laicidade do Estado, estabelecida expressamente, pela primeira vez entre nós, na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891.
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Segundo o consultor-geral, o monumento não poderia ser construído com apoio estatal em razão de representar imagem de religião específica, o que ofenderia a consciência da população que não compartilharia da mesma fé. Seria, segundo o parecerista, “a concessão de um favor do Estado em benefício de uma Igreja”, algo contrário aos ditames constitucionais.
No texto, Rodrigo Octavio invocou curioso precedente ocorrido em 1892, no qual se discutiu a permanência ou não da imagem de Jesus Cristo crucificado nas salas do Júri. Nas palavras do parecerista, “o caso foi que, negado o pedido de retirada dessa imagem feito por um jurado não católico, foi um dia essa imagem destruída por outro jurado violento e fanático”.
A conclusão a que lá se chegou foi replicada no parecer do Cristo Redentor: é ilegal e inconstitucional a manutenção da imagem cristã na sala do Júri em um Estado considerado laico (conforme previsão do Código Civil de 1916, art. 66, I, e 67).
Agora em novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar a respeito de idêntica questão de direito: pode um prédio público, especialmente do Poder Judiciário, ostentar em suas paredes um símbolo religioso como o Cristo morto na cruz?
Nossa Corte Constitucional entendeu, no Tema 1086 de Repercussão Geral (Agravo em Recurso Extraordinário 1.249.095/SP), que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, como imagens e crucifixos, não fere o princípio da neutralidade estatal em relação às religiões nem a liberdade de crença das pessoas.
Em seu voto vencedor, o ministro relator Cristiano Zanin lembrou decisões similares do Conselho Nacional de Justiça (Pedidos de Providência 1344 a 1346) no sentido de que a cultura e a tradição de um país também se manifestam por símbolos religiosos, o que deve ser tutelado. Ressaltou, ainda, que a Constituição Federal protege a liberdade religiosa, sua livre manifestação e exercício, e proíbe a discriminação por motivos de crença ou convicção filosófica. O que estaria vedado, segundo o referido magistrado, seria uma lei que impusesse a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, o que afrontaria a laicidade estatal.
A Corte Europeia de Direitos Humanos também já decidiu pela manutenção de crucifixos em escolas públicas. Embora sejam um símbolo inegavelmente religioso, representam os princípios e valores que formaram os alicerces da democracia e da civilização ocidental, e que sua presença nas classes é justificável. Ademais, não haveria, segundo aquele tribunal, “prova de que a exibição de um crucifixo em sala de aula influencie os alunos cujas crenças estão em formação”[1].
A Suprema Corte dos Estados Unidos se debruçou sobre o assunto em algumas ocasiões, com decisões distintas à luz da interpretação da primeira emenda da Constituição que garante a laicidade estatal. Em determinado caso entendeu, por exemplo, que a exibição dos dez mandamentos em um tribunal do Kentucky seria inconstitucional por considerar que se estaria promovendo uma visão religiosa específica (Mc Creary County vs ACLU – 2005[2]).
Em outro julgado, a Suprema Corte estadunidense chancelou a instalação de uma cruz cristã de 12 metros em um cruzamento público de Maryland, como memorial a soldados mortos na Primeira Guerra Mundial (American Legion vs American Humanist Association – 2019[3]). A razão de decidir foi no sentido de que o referido símbolo religioso estaria intimamente conectado a um contexto histórico e cívico, o que denotaria uma finalidade secular legítima: proteger a memória histórica do país.
Embora tenham ocorrido alguns episódios de violência religiosa nos últimos anos, em boa parte das democracias contemporâneas é comum a livre manifestação religiosa (ou mesmo a liberdade de não crer) em locais públicos e dedicados ao atendimento da coletividade, como símbolo das tradições do país.
Por óbvio, nosso saudoso consultor-geral da República não poderia imaginar à época que, depois de um século do seu parecer, aquele polêmico monumento religioso seria premiado por compor a única paisagem cultural urbana reconhecida como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, além de mais famoso cartão postal da cidade maravilhosa.
Morto em 1944, teve ao menos a chance de contemplar a beleza exuberante daquela estátua e, quem sabe, de agradecer ao presidente da República – talvez também à Providência – pela rejeição do seu tão bem fundamentado parecer.
[1] Lautsi v. Italy, aplication n. 30814/06, citado no voto do Ministro Cristiano Zanin no ARE 1.249.095/SP.
[2] Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/545/844/.
[3] Disponível em https://www.supremecourt.gov/opinions/18pdf/17-1717_4f14.pdf.