O pardo como categoria jurídica

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Nos últimos anos, têm se intensificado dois fenômenos a respeito do tema da identificação racial no Brasil.

O primeiro deles é a retroalimentação de uma narrativa que renega a figura do pardo como categoria de cor perante os censos, alegando se tratar de um termo problemático. É o velho discurso de que “pardo é papel”. Com base nele, vê-se muitas pessoas negras de pele clara reivindicando-se como “pretas” (perante os censos ou até ações afirmativas), embora carreguem em sua fenotipia elementos evidentes de miscigenação (a pele mais clara, principalmente).

O segundo fenômeno está relacionado ao crescimento da reivindicação do “pardo” como uma categoria desassociada do “negro”. Aqui me refiro a pessoas que, em geral, carregam consigo a fenotipia de uma pessoa branca, sendo socialmente reconhecidas como tal e, no entanto, sob a alegação de possuírem um histórico de miscigenação em seus laços familiares, se declaram como pardas perante as instâncias oficiais.

A figura do pardo brasileiro tende a ser a fonte das principais controvérsias relacionadas à autodeclaração racial no Brasil. Essas controvérsias têm uma explicação histórica e dialogam com as experiências dos censos brasileiros, onde a noção de “pardo” foi revista em diversos momentos. No primeiro censo do país (1872), o “pardo” figurava como uma categoria residual, abrangendo todos que não eram brancos, pretos ou caboclos (indígenas e mestiços de indígenas). Em 1940, “pardo” passou a contemplar pessoas mestiças de qualquer grupo racial, além dos caboclos e seus descendentes. Somente em 1991 a categoria “indígena” passa a ser utilizada para classificação do censo demográfico, saindo da denominação “pardo”.

Essas mudanças, naturalmente, provocaram impactos profundos (e ainda recentes) na maneira como a população brasileira se identifica em termos de raça e cor. Há quem renegue o termo pardo por completo, por entendê-lo discriminatório, como também há pessoas que recorrem à categoria sem compreender com profundidade o seu significado e sua relevância para a construção da identidade racial no Brasil.

A explicação para esse fenômeno varia, mas pode ser entendida como uma incompreensão política, cultural e jurídica que existe por trás do conceito “pardo”.

Nas décadas de 1970 e 1980, os sociólogos brasileiros já notavam que, embora os negros de pele clara vivenciem certa “vantagem” de status social, por não carregarem consigo todos os elementos da fenotipia africana que é detestada pelo padrão estético proveniente do racismo nacional (o que hoje se convencionou chamar de colorismo), tanto os pretos quanto os pardos são vítimas do desprezo, da discriminação e do desdém racial manifestados em nossa sociedade.[1]

Com base nessa percepção sociológica, nasce a proposta do “negro” como categoria acopladora de pretos e pardos – a partir da identificação sociológica de semelhanças entre esses dois grupos. Tais semelhanças compreendem, principalmente, os indicadores socioeconômicos percebidos entre eles: pretos e pardos, desde o período da escravização, têm sido alvo de elevada mortalidade infantil e materna, baixa expectativa de vida, precária infraestrutura sanitária e social nos lugares em que residem, além de serem as principais vítimas da ausência de acesso a bens e serviços públicos (educação, trabalho formal e saúde).[2]

Buscando unificar e fortalecer as demandas desses dois grupos, propôs-se a reconstrução do conceito “negro”. Em 2010, essa categoria é incorporada no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010). A norma propõe uma interpretação segundo a qual o “negro” representa a soma de autodeclarados “pretos” e “pardos”, criando um incentivo para que essas duas categorias, embora diferentes entre si, sejam tratadas como parte de um único grupo.

Desde a criação do Estatuto, diferentes leis, decisões judiciais e atos normativos infralegais passaram a adotar a noção de “negro” como a junção de pretos e pardos. Cito como exemplo a Lei 12.990/2014, que estabelece cotas raciais nos concursos públicos federais, e as decisões do STF proferidas na ADPF 186 e na ADC 41, que reconhecem a constitucionalidade das ações afirmativas no país.

Por conta disso, até que surja norma posterior alterando essa interpretação (o que não parece estar no horizonte das pautas legislativa sobre a temática), os autodeclarados pretos e pardos no Brasil são necessariamente negros para fins jurídicos, e, em tese, podem gozar dos benefícios afirmativos criados para corrigir as distorções do racismo institucional no país.

Não há fundamento jurídico que explique frases como “Sou pardo, não negro” ou “Sou preto de pele clara”. Quem se autodeclara como pardo deve, juridicamente, assumir sua pertença racial como pessoa negra. Do mesmo modo, não há que se falar em “pretos de pele clara”, uma vez que preto é a categoria jurídica utilizada para se referir a pessoas negras de pele escura, pouco ou não miscigenadas.

Com isso, outro apontamento fundamental ao debate: a autodeclaração racial no Brasil deve ter um embasamento associado ao fenótipo do indivíduo, já que este é o critério norteador da discriminação racial no país. As pessoas são socialmente identificadas como negras não porque possuem “sangue africano” correndo em suas veias, mas porque apresentam em sua fisionomia, de maneira não isolada, um conjunto de características tradicionalmente associadas à população negra (relacionadas a, entre outros fatores, tom de pele, textura capilar e traços faciais) e, por conta dessas características, acabam sendo vítimas de piadas preconceituosas, de abordagens policiais truculentas e de uma série de outras violências institucionais.

O propósito de apresentar esses argumentos, por óbvio, não é o de desincentivar o exercício de liberdade à autodeclaração de quem quer que seja. O que se pretende, por outro lado, é trazer responsabilidade às declarações de raça no Brasil e chamar atenção para as circunstâncias que atuam para corromper os dados relacionados a determinados grupos étnico-raciais e, consequentemente, importantes índices referentes a renda, acesso a serviços, políticas públicas e mercado de trabalho por parte desses grupos.

Por exemplo, um número expressivo de pessoas que são pardas (pessoas negras de pele clara), mas que apresentam ao censo a autodeclaração como pretas (pessoas negras de pele escura), poderá passar ao Estado uma falsa mensagem de que os índices sociodemográficos entre pretos e pardos brasileiros são idênticos, quando, na verdade, há estudos que mostram que, por conta do racismo, pessoas de pele escura possuem maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e a políticas afirmativas governamentais.[3]

No mesmo sentido, admitir que pessoas mestiças, mas socialmente interpretadas como brancas no Brasil, se autodeclarem como pardas perante as instâncias oficiais pode ser uma porta aberta para a configuração de fraudes nas medidas institucionais de caráter afirmativo.

Para enfrentamento dos fenômenos apresentados no início do texto, tornou-se importante defender o pardo como uma categoria jurídica, fruto de uma batalha dos setores antirracistas do último século. Pardo não é papel, e nem uma categoria que serve a toda a população brasileira miscigenada. Fazendo referência à grande intelectual brasileira Carla Akotirene, é urgente devolver o pardo ao movimento negro[4].

[1] Abdias do Nascimento. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. 1978, p. 69.

[2] OLIVEIRA, Bruno Luciano Carneiro Alves; LUIZ, Ronir Raggio. Densidade racial e a situação socioeconômica, demográfica e de saúde nas cidades brasileiras em 2000 e 2010. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 22, 2019, p. 9.

[3] Segundo dados divulgados pelo IBGE, em 2017, o rendimento médio real de um trabalhador branco é de R$2.660; o de um trabalhador pardo é de R$1.480; e o de um trabalhador preto é de R$1.461. De acordo com levantamento realizado pela Liga de Ciência Preta Brasileira, em 2020, a pós-graduação brasileira é composta por 82,7% de pessoas brancas, 12,7% de pardos e 2,7% de pessoas pretas.

[4] Ver “Devolvam o pardo ao movimento negro”, disponível em: <https://mundonegro.inf.br/devolvam-o-pardo-ao-movimento-negro-diz-carla-akotirene/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2024.