No Brasil e no mundo, a agenda ESG (Environmental, Social and Governance) vem influenciando diversos ambientes regulatórios e setores econômicos. Entre os principais efeitos constatados, ganha destaque a publicação de novos padrões e regulamentos que tratam sobre requisitos e diretrizes de governança, gestão de riscos e divulgação corporativa ligados aos temas ambientais, climáticos, sociais e de governança.
Um dos setores impactados por esta agenda é o mercado de seguros. Diretamente vinculadas ao gerenciamento e tratamento de variados riscos, as seguradoras e demais entidades do setor passaram a estar sujeitas às obrigações da recente Circular 666, de junho de 2022, editada pela Susep (Superintendência de Seguros Privados).
Por meio da Circular, a entidade reguladora instituiu requisitos de sustentabilidade a serem observados pelas sociedades seguradoras, entidades abertas de previdência complementar (EAPCs), sociedades de capitalização e resseguradores locais. Pelo regulamento, as seguradoras deverão desenvolver e implementar formalmente políticas de sustentabilidade, estrutura de gestão de riscos de sustentabilidade (riscos climáticos, ambientais, sociais e de interesse comum), devendo ser desenvolvido, inclusive, um estudo de apuração da materialidade de riscos, além da articulação de controles sobre fornecedores e investimentos e de relatório e reporte de sustentabilidade anual.
No que se refere à gestão de riscos, a temática já representa uma política sem a qual as seguradoras e entidades similares não operam efetivamente neste setor. Ocorre que, a partir da nova Circular ESG da Susep, as entidades do mercado segurador brasileiro deverão também gerenciar e controlar, tanto em suas operações e estruturas, como na concessão de contratos, apólices, franquias e demais produtos, os riscos climáticos – físicos, de transição e de litígio –, ambientais, sociais e de interesse comum, para além dos tradicionais riscos operacionais, de liquidez ou de crédito.
Trata-se de uma tendência mundial que reorienta e ressignifica o papel dos seguros e das entidades seguradoras, voltada à concretização de seu dever fiduciário e de agente estratégico para o fomento efetivo dos propósitos ambientais, climáticos, sociais e de governança da agenda ESG nacional e internacional.
Com efeito, ao se pensar no complexo desafio de mitigar e controlar os riscos e as concretas violações em matéria ambiental, climática, de direitos humanos e sociais, bem como de governança e compliance, reafirma-se a função relevante que o setor de seguros desempenha para o atingimento exitoso das finalidades constitucionais endereçadas a ele, incluindo a de promoção da sustentabilidade para a economia, os negócios e a sociedade.
Os fundamentos do ESG na regulação do setor de seguros
A regulação do mercado de seguros justifica-se em razão da importância que esta atividade econômica tem para o desenvolvimento nacional. A formação e a manutenção do mercado em questão exige a atuação direta do Estado para garantir o interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de seguro, bem como para fortalecer as relações econômicas existentes neste ambiente, integrando-o ao processo econômico e social do país (artigos 2º, 4º e 5º, do Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966).
O fundamento último da atividade reguladora estatal nesse setor está na Constituição Federal. Em seu art. 21, VIII, o texto constitucional estabelece ser da competência da União fiscalizar as operações de seguro. Em complemento, o art. 22 elenca, como competência privativa da União, o poder de legislar sobre a “política de seguros”. Na sua redação original, o art. 192 indicava que os estabelecimentos de seguro constituíam o “sistema financeiro nacional”, cujo objetivo é “promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir os interesses da coletividade”.
Muito embora o art. 192 tenha sofrido alterações em razão das Emendas Constitucionais 13/1996 e 40/2003, os princípios que regem o sistema financeiro nacional foram mantidos na essência. Isto significa dizer que o art. 192 não perdeu a sua importância normativa, seguindo como elemento vinculativo entre o sistema financeiro, o sistema de seguros e o projeto constitucional.
Conforme sinaliza Gilberto Bercovici, a base do art. 192 é a projeção da ordem econômica no tempo, tal como um programa para o futuro. Isso porque o dispositivo em referência projeta temporalmente o conflito econômico e difere a escassez, definindo a distribuição dos recursos. Esta estrutura norteia a regulamentação de toda a atividade seguradora. Por diversos ângulos, portanto, é fácil a conclusão de que o setor de seguros ocupa um papel preponderante naquilo que diz respeito ao “desenvolvimento equilibrado do país”.
A ideia de “desenvolvimento” inserta do texto constitucional, por sua vez, deve ser buscada numa compreensão conceitual abrangente. Tal entendimento é substancializado, entre outras previsões, por aquilo que preveem os artigos 3º, III, 170, caput, e incisos, e 219, da Constituição Federal. A interpretação conjunta desses dispositivos revela que a noção de “desenvolvimento” endereçada para o setor de seguros vai além da tarefa de estabelecer uma certeza sistêmica de continuidade para o ambiente negocial, a chamada previsibilidade do “mercado”.
Mais do que isso, o setor de seguros também tem a incumbência de desempenhar um papel ativo na transformação da sociedade brasileira. Esse processo de transformação deve pressupor tanto o desenvolvimento econômico quanto o social, contemplando, por isso mesmo, as pautas de defesa do meio ambiente e de redução das desigualdades sociais. O setor de seguros deve contribuir ativamente para a implementação do projeto previsto na Constituição.
O entendimento não é novo. Em 2012, por exemplo, Alessandro Octaviani, então conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e atual superintendente da Susep, já advogava que o setor de seguros estava diretamente vinculado à tarefa de “superação do estado de subdesenvolvimento”. Para o autor, “toda regulação infraconstitucional sobre seguro, quer seja a regulação que determine os termos do contrato, a atuação da empresa ou a conformação do mercado, está submetida à pauta simultânea dos artigos 3º, 219 e 192” da Constituição[1].
A atribuição de uma função ampla para o setor de seguros – é preciso dizer – não conflita com a atividade econômica exercida pelas companhias que nele operam ou tampouco deve ser percebida como “filantropia”. Ao contrário, pode-se afirmar com segurança que o controle das pautas originariamente direcionadas pelo texto constitucional, e agora reoxigenadas pela agenda ESG, em verdade, consubstanciam um papel que o setor pode desempenhar com destreza.
Para tanto, basta perceber que, atualmente, é inconcebível que a ideia de “previsibilidade do mercado” exclua a variável “crise climática”. Em outras palavras, o conflito social que é objeto do art. 192 engloba as pautas climáticas e sociais, impondo a redefinição da governança em setores econômicos relevantes, como no caso do mercado de seguros.
O cenário brasileiro na prática
A despeito das recentes regulações da Susep e de toda a base constitucional que lhe empresta sentido, no cenário brasileiro, o mercado de seguros precisa avançar em termos de contribuição[2]. Somente assim os mais complexos fatores, temas e riscos ESG poderão ser mapeados, monitorados e controlados diante de atividades econômicas que possuam significativos impactos ambientais, climáticos, sociais e humanos.
Se em primeiro momento a regulação estatal do setor transitou entre a necessidade de industrialização do Brasil e o aumento dos níveis concorrenciais, agora, o objetivo deve ser estabelecer um sistema orgânico de controle e indução estatal direcionado aos desafios ambientais, climáticos, sociais e de governança impostos pela nova realidade da sociedade e do planeta.
É no gerenciamento e controle, efetivo e sistêmico, acerca dos riscos ligados a operações e setores econômicos complexos que se materializa a tarefa incumbida às seguradoras pelo texto constitucional. Tal como bem colocado pela Susep na sua diretriz ESG, os seguros têm o potencial de representar mecanismo apto a impulsionar a ambição dos segurados e dos demais interessados para a aplicação das melhores práticas de sustentabilidade nos negócios, projetos e investimentos.
A esta altura da discussão e do contexto social vinculado à agenda ESG, é incontroverso que setores como o de seguros não mais podem alegar “cisnes verdes” quanto ao cumprimento de seus compromissos de controle dos riscos e perdas ligadas a fatores ambientais, climáticos, sociais e de governança[3].
Frente a um cenário de extremos climáticos e ambientais, assim como de episódios de violações a direitos humanos e sociais, o setor de seguros possui uma missão de extrema relevância, expressa no sentido de garantir o interesse de seus segurados face aos sinistros e perdas, mas também de servir como agente de transformação no mercado e nas empresas em direção à sustentabilidade. A não observância desse propósito configura não apenas um “desvio regulatório”, mas, sobretudo, o descumprimento de mandamento constitucional, indicando que eventuais responsabilizações daí advindas podem ultrapassar a seara do órgão regulador setorial, atingindo outros núcleos.
Em suma, não se trata simplesmente de seguir influxos impostos pela efervescente agenda ESG, senão também de seguir a função estabelecida na Constituição para o mercado segurador, de modo a cumprir com seu importante papel para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
[1] CADE. Ato de Concentração no 08012.005526/2010-39. Requerentes: Banco do Brasil S.A., BB Seguros Participações S.A. e Mapfre Vera Cruz Seguradora S.A. Voto do Conselheiro Relator Alessandro Octaviani Luis. p. 8-9. Julgado em 14 de março de 2012.
[2] Neste sentido, importante é o estudo publicado em 2023 pela associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), cujas conclusões apontam que estruturas e políticas de riscos ESG em seguradoras no Brasil ainda são incipientes, mesmo nas seguradoras do maior segmento do setor. Disponível em: http://rasa.org.br/gerenciamento-de-riscos-asg/resultados-3o-ciclo-rasa-seguradoras/ Acesso em: 07 fev. 2024.
[3] ELKINGTON, John. Green Swans. The coming boom in regenerative capitalism. Greenleaf Book Group Press, 2020.