Em 2023 o Brasil foi palco de grandes contradições na agenda da segurança alimentar: o país que se coloca como um dos maiores exportadores globais de alimentos sofre com a volta da fome[1], assiste a progressiva substituição de alimentos in natura por ultraprocessados[2] e o avanço do “PL do veneno” – um projeto de lei que flexibiliza ainda mais a utilização de agrotóxicos.
Se, por um lado, o reconhecimento do status jurídico do direito à alimentação em âmbito internacional[3] impulsiona, no plano doméstico, sua incorporação pelos textos constitucionais e políticas públicas voltadas à garantia da segurança alimentar e à regulação do acesso à terra; por outro, normas e instrumentos jurídicos podem também influenciar na perpetuação da fome no mundo, ao regular o mercado e a indústria de alimentos a depender dos atores e interesses atendidos[4]. Alimentação é, portanto, um tema crucial para o direito econômico.
A convivência entre fartura e escassez demanda uma reflexão sobre o papel do direito e do estado em relação a esse setor específico da economia. Se, por um lado, a garantia do direito à alimentação e nutrição adequadas (art. 6º, CF) depende obviamente das políticas públicas governamentais; por outro, a regulação – aqui entendida como as ações estatais direcionadas às prescrições sobre o que os agentes privados podem ou não fazer, compatibilizando sua atuação ao interesse público[5] – desempenha um papel central na indústria.
As medidas regulatórias destinadas a estabelecer regras do funcionamento da indústria de alimentos ultraprocessados e in natura são elementos fundamentais para o combate à má nutrição e a promoção da saúde pública. Artigos científicos recentes publicados na revista Lancet têm alertado para as condicionantes jurídicas e comerciais da saúde pública global, em particular para a necessidade de legisladores, juízes e gestores públicos agirem para evitar que a indústria de forma isolada, ou em conjunto com outros atores – sobretudo os governos – atuem na elaboração de políticas e normas que privilegiem a liberdade econômica em detrimento da proteção da saúde humana e planetária[6].
Destaca-se sobre este ponto, as regras jurídicas sobre acesso à terra, publicidade de alimentos, rotulagem nutricional frontal, tributação, compras públicas de alimentos entre outras normas jurídicas, capazes de influenciar de maneira direta o funcionamento da indústria e do mercado e, consequentemente, a qualidade e quantidade dos alimentos que chegam à mesa da população[7].
De partida, o direito pode chancelar a produção de normas que confirmam uma exploração não-sustentável do espaço e da propriedade. Assim, a regulação do acesso à terra urbana e rural e seus desdobramentos sobre a grilagem e proteção do meio ambiente devem ser um eixo de preocupação central. Nessa frente, vale notar que a Lei Federal 13.465/17, batizada de “Lei da Grilagem” por diversos movimentos e organizações da sociedade civil, que alterou as normas sobre a regularização fundiária urbana e rural, reforma agrária e alienação de bens públicos federais, é objeto de ações diretas de inconstitucionalidade que não foram ainda apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal[8].
A utilização massiva de agrotóxicos conecta-se à extensão dos imóveis rurais e ao modo de produção dissociado da preservação da biodiversidade[9]. Nesse sentido, vale mencionar o projeto de lei (PL 1459/2022) recentemente aprovado pelo Congresso Nacional, apelidado de “Pacote do Veneno” pela sociedade civil e que aguarda sanção e/ou veto do presidente da República. Ao proibir apenas produtos que sejam capazes de gerar risco “inaceitável” à saúde, o projeto retrocede na proteção à saúde e à vida humana e de outros animais.
Em relação aos alimentos ultraprocessados, a academia brasileira destaca-se na produção de pesquisas sobre a classificação e implicações da produção e consumo desses alimentos na dieta da população[10]. No entanto, a regulamentação dessa indústria no Brasil, assim como em outros países do mundo, não deixa de envolver disputas substanciais, especialmente diante do poder econômico das empresas envolvidas[11].
Novos contornos foram delineados com a aprovação das regras de rotulagem nutricional frontal – aprovadas pela RDC 429/20 da Anvisa e que instituem o desenho gráfico da lupa para identificar o alto teor de açúcar adicionado, gordura saturada e sódio –, agora em fase de implementação. Uma boa notícia recente foi a alteração do posicionamento da Advocacia Geral da União (AGU), confirmando a validade da RDC 24/2010, e as atribuições da Anvisa na regulação da publicidade de alimentos com alto teor de açúcar, sal e gordura.
A indústria de alimentos é também influenciada por mecanismos jurídicos e políticas públicas que indiretamente atuam na regulação dessa atividade econômica central para o país, como por exemplo, as compras públicas de alimentos e a tributação. Destaca-se aqui o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), considerado um dos maiores e mais bem-sucedidos programas de alimentação escolar do mundo[12].
O caso do Pnae mostra que certas regras do processo de contratação dos fornecedores – em especial a norma que prevê a simplificação do processo de contratação e a obrigatoriedade de aquisição de 30% dos alimentos para merenda escolar de produtos produzidos pela agricultura familiar, povos indígenas e quilombolas – podem aumentar a efetividade da realização do direito à alimentação e nutrição adequadas dos estudantes de escolas públicas, bem como podem catalisar a ampliação do mercado de alimentos, em particular por expandir fontes de alimentos in natura, mais saudáveis do ponto de vista nutricional.[13]
Os arranjos jurídicos e institucionais pelos quais as compras públicas se operacionalizam, a depender de como sejam mobilizados, podem contribuir para consecução de objetivos de políticas públicas e de programas governamentais e, assim, podem ainda delimitar os contornos de mercados existentes, ou fomentar o surgimento de novos mercados[14].
As medidas fiscais voltadas à promoção da saúde pública também são relevantes para a alimentação no Brasil. A regulação da indústria nessa frente poderia concretizar-se por intermédio da tributação de produtos nocivos, que interferem na alimentação dos brasileiros – como, por exemplo, dos refrigerantes, ultraprocessados e agrotóxicos – hoje excluídos do texto aprovado da reforma tributária.
Por fim, vale lembrar que assistimos nos anos recentes um enfraquecimento generalizado das capacidades estatais no campo da segurança alimentar, caracterizada, sobretudo, pela extinção e fragilização de uma série de órgãos e programas governamentais, que compunham o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Sisan (Lei 11.346/06). Nesse sentido, é fundamental reconhecer a retomada do fortalecimento de instituições no âmbito das políticas públicas, com a criação e incremento dos órgãos, programas e instrumentos governamentais voltados à promoção da segurança alimentar neste ano de 2023 que está chegando ao fim – tais como a Secretaria Extraordinária de Combate à Fome, o Consea, a Conab, a Caisan, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, a criação do programa Brasil sem Fome, a retomada do Bolsa Família, do Programa Cisternas, do Programa de Aquisição de Alimentos, da Conferência Nacional de Segurança Alimentar, entre outros.
Não basta, porém, olhar para as ações estatais executadas para combater a fome e a má alimentação apenas por meio de políticas públicas. A concretização do direito à alimentação e nutrição adequadas depende, sobretudo, da elaboração e implementação das normas jurídicas voltadas ao funcionamento da indústria de alimentos in natura e de ultraprocessados, como as apresentadas ao longo deste texto, que envolvem uma ampla gama de atores. Os exemplos de regras que moldam e direcionam o funcionamento da indústria da alimentação no Brasil demonstram que essa agenda é tema central para o direito econômico.
[1] De acordo com o II Inquérito sobre Segurança Alimentar, em 2022, 33.1 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar grave, caracterizada pela convivência com a fome (REDE PENSSAN, II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil. Fundação Friederich Ebert: Rede Penssan, 2022 ).
[2] MARTINS, Ana Paula Bortoletto et al. Increased contribution of ultra-processed food products in the Brazilian diet (1987-2009). Rev Saúde Pública 2013; 47:656-65; SWINBURN, Boyd et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet 2011; 378:804-14; MONTEIRO, Carlos Augusto et al. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.
[3] O direito à alimentação está previsto expressamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 25); pela Convenção dos Direitos Econômicos e Sociais (art. 11); pela Convenção dos Direitos das Crianças e Adolescentes (arts. 24 e 27); pelos Objetivos do Milênio (2000); no Comentário Geral n º 12 sobre o direito à alimentação adequada; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (2012); pela Nova Agenda Urbana (2016) e pelo Pacto de Milão sobre a Política de Alimentação Urbana (2015).
[4]CHADWICK, Anna. Law and the Political Economy of Hunger, Oxford, Oxford University Press, 2019.
[5]CHANG, Ha-Joon The Economics and Politics of Regulation. In Cambridge Journal of Economics, 1997, 21, 6.
[6] GOSTIN, Lawrence et. al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development.The Lancet. Vol. 393. May 4, 2019, p. 1857-1910; GILLMORE, Anna et. al. Determinantes comerciais da saúde – 1, The Lancet, Março, 2023..
[7] PEREIRA, Tatiane Nunes et al. Medidas regulatórias de proteção da alimentação adequada e saudável no Brasil: uma análise de 20 anos. Caderno de Saúde Pública, vol. 37, 2021.
[8] Tramitam no STF atualmente as ADINs nº 5771, 5787 e 5883 ainda sem julgamento.
[9] BOMBARDI, Larissa. Agrotóxicos e colonialismo químico.São Paulo: Editora Elefante, 2023.
[10] MONTEIRO, Carlos A., et al. “NOVA. The star shines bright.” World Nutrition 7.1-3 (2016): 28-38.
[11] VAN TULLEKEN, Chris. Ultra-Processed People: Why Do We All Eat Stuff That Isn’t Food… and Why Can’t We Stop?. Random House, 2023.
[12] UNITED NATIONS. Food nutrition and the right to health, 2023. Disponível no seguinte endereço eletrônico: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N23/208/05/PDF/N2320805.pdf?OpenElement
[13] No campo da alimentação nas escolas, outras regras que chamam atenção são as recém-aprovadas sobre a promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar (Decreto federal nº 11.821/23) que estabelece regras voltadas à redução de alimentos ultraprocessados e outros alimentos em desconformidade com o disposto no Guia Alimentar para a População Brasileira no ambiente escolar.
[14] COUTINHO, Diogo et al. Direito e inovação em compras públicas: o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Revista de Estudos Institucionais, v. 8, n. 2, p. 203-228 , maio/ago. 2022.