Nesta semana foi confirmada a indicação do novo ministro para ocupar a vaga deixada pela ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). Este fato nos leva a refletir sobre a importância do aumento da diversidade naquele tribunal e nos postos mais altos das carreiras jurídicas em geral, bem como sobre o papel que o Direito pode ter para a busca da justiça racial.
Neste mês de novembro concluímos a leitura do livro Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica, de Adilson José Moreira (2019), no Grupo de Estudos Esperança Garcia[1]. Somos um grupo inter-racial de advogadas, negras e brancas, comprometidas com reflexões sobre temas raciais e procuramos incorporar em nossas vidas atitudes antirracistas. As discussões sobre este livro impactaram de forma profunda as visões que tínhamos do Direito e de sua aplicação na prática jurídica em geral, e em nossas vidas, em particular. Gostaríamos de apresentar algumas de nossas reflexões, para que possamos contribuir com a busca da justiça racial no Brasil.
O debate principal gira em torno do direito à igualdade e suas interpretações. O Direito privilegia a concepção universal e procedimental da igualdade, segundo a qual o Direito deveria dar tratamento simétrico aos indivíduos, independentemente de sua raça, gênero, origem ou condição. Esse universalismo seria garantia de que não seriam privilegiadas determinadas pessoas ou grupos com maior acesso aos canais de poder. Além disso, o Direito seria ferramenta de garantia da ordem social.
O professor Adilson Moreira demonstra que esta forma de aplicar o Direito está longe de conduzir à paz social. Tendo em vista que vivemos numa sociedade profundamente desigual, na qual as pessoas brancas gozam de uma série de benefícios e privilégios, o uso do Direito para a manutenção da ordem acarreta na reprodução dessa situação de desigualdade. A desigualdade racial na Justiça pode ser percebida sob várias perspectivas, tais como pelo excesso punitivista na aplicação do Direito em relação à população negra, bem como pela baixa presença de pessoas negras nas posições mais altas da magistratura e demais carreiras públicas ou privadas. Por isso, o Direito pode e deve ser usado como ferramenta de transformação social, a partir da interpretação do princípio da isonomia previsto na Constituição Federal, com vistas a promover a igualdade de status entre os grupos sociais.
O problema da noção procedimental de igualdade é que ela se contenta com a igualdade formal entre os indivíduos, o que pressupõe uma homogeneidade racial, como se todos os indivíduos se encontrassem na mesma situação social. Essa ideia de homogeneidade racial é uma “estratégia discursiva” utilizada para combater as medidas de inclusão racial, tais como cotas raciais e ações afirmativas, que desestabilizam os sistemas de privilégio que estruturam a sociedade brasileira.
O ponto central a ser considerado é que raça é uma noção social e elemento estruturante das relações de poder que fundamentam o racismo. Além disso, a noção de raça tem um caráter dinâmico. As regras são estabelecidas a partir dessa dinâmica de poder, desigual, que cria privilégios para um grupo ao mesmo tempo em que oprime o outro. Por isso, a mera aplicação do Direito, baseada apenas na igualdade formal, sem considerar os impactos nos grupos sociais, vai tender a reproduzir essas relações de poder, reproduzindo as desigualdades raciais e promovendo a invisibilidade do racismo.
Assim, as premissas liberais da hermenêutica jurídica majoritária são insuficientes para pensar as relações entre raça e Direito, numa perspectiva de transformação social. Nesse sentido, novos temas precisam ser incorporados nas interpretações jurídicas, além da discussão das cotas raciais e outras ações afirmativas: sobre o papel da raça no processo de interpretação das normas jurídicas, o papel da raça na formação da subjetividade do intérprete (juristas nas diversas carreiras profissionais), e o papel da raça na formação da realidade social sobre a qual o Direito vai ser aplicado.
Adilson José Moreira convida as pessoas operadoras do Direito, sejam negras ou não, a pensarem como um jurista negro, aplicando os princípios da Teoria Racial Crítica, que traz novas perspectivas para essa reflexão. “Pensar como um negro significa compreender o Direito como um instrumento de transformação social, como algo que pode ter o poder de afirmar a dignidade do povo negro.” (Moreira, 2019, p. 286). A chave para essa empreitada está dentro da Constituição, a partir da interpretação do princípio da isonomia, visando promover a igualdade de status entre os grupos sociais. Os elementos cruciais sobre sua interpretação do princípio da igualdade são os seguintes:
Primeiro, devemos abandonar a interpretação da igualdade sob a perspectiva individualista, que se refere às pessoas individualmente, e que ignora que as pessoas vivem em sociedade, integram grupos sociais distintos, estão sujeitas a mecanismos de exclusão diversos. Assim, a aplicação do princípio da igualdade deve considerar os indivíduos inseridos em grupos sociais, de forma que o objetivo deve ser buscar a igualdade dos grupos sociais.
Em segundo lugar, não se trata apenas da busca da igualdade material, que obviamente é importante e deve ser buscada. Mas o autor enfatiza que se deve buscar a igualdade de status entre os grupos, com vistas a eliminar a hierarquia social entre o grupo privilegiado branco e o grupo subalternizado negro, que sofre a opressão. Também se deve interpretar a igualdade dentro do contexto de relações de poder que definem os locais que brancos e negros deveriam ocupar, e que é a partir desses lugares que os sujeitos sociais se constroem.
Assim, o jurista que pensa como um negro, seja uma pessoa negra ou não, “não pode perder de vista o fato de que as pessoas são discriminadas porque pertencem a certas comunidades, pertencimento que indica uma forma de identidade que determina a vida das pessoas. Assim, a igualdade deve ser voltada para a proteção de grupos sociais, única forma de promovermos uma transformação da nossa nação” (Moreira, 2019, p. 287).
Como advogadas que somos, não podemos deixar de mencionar que a inadequação da aplicação universalista do Direito ocorre não somente em relação à questão racial, mas também em relação ao gênero, e em particular em relação às mulheres negras. Enquanto mulheres sofremos, em comum, a opressão do sexismo e das restrições ao acesso a posições de poder na sociedade. Mas enquanto as mulheres brancas se encontram em posição de gozar os privilégios reservados à branquitude, as mulheres negras são impactadas ao mesmo tempo pelas desigualdades de gênero e de raça, inclusive em suas relações com as mulheres brancas, como nos ensinam Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Cida Bento e tantas outras intelectuais negras.
A chave para a aplicação isonômica do Direito reside em se considerar os efeitos de sua aplicação aos grupos sociais em situação de desigualdade econômica e social, nas perspectivas de raça, gênero, classe social, condição, origem, sexualidade e outras. Não por outro motivo que diversas organizações e movimentos sociais vêm há meses defendendo a nomeação de uma ministra negra para o Supremo.
Nesse sentido, é frustrante que a indicação de hoje represente uma diminuição da já baixa presença de mulheres naquele tribunal, que passaria a contar com somente uma ministra. Esperamos que o futuro ministro, do mais alto gabarito intelectual e profissional, possa contribuir para ampliar no Tribunal a interpretação do Direito como um jurista negro. Pensar o Direito como instrumento de transformação social nos fornece ferramentas para que nós, operadoras e operadores do Direito, possamos ser agentes de transformação, em vista do combate ao racismo e eliminação dos mecanismos explícitos e implícitos de opressão das pessoas negras na nossa sociedade.
Beto, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo, Companhia das Letras, 2022.
Carneiro, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos Avançados, 17 (49), 2003, p. 117-132.
Gonzalez, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
Moreira, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo, Contracorrente, 2019.
[1] A autora agradece a Brenda Ipe, Caren Almeida, Daniela Piffer, Giovana Comiran, Rachel Honorato e demais integrantes do Grupo de Estudos Esperança Garcia, do Women in Law Mentoring Brazil, pelos debates em torno do livro do Prof. Adilson José Moreira (2019) e sugestões para este texto. Agradeço também as contribuições de Ana Carolina Andrada Arrais Caputo Bastos e da organização Elas Pedem Vista.