No último 30 de abril, findou o Edital PGE/Transação 1/2024, o “abre alas” da Lei Estadual 17.843, de 7 de novembro de 2023 (também denominada Acordo Paulista), que instituiu os novos parâmetros da transação tributária no estado de São Paulo.
Trata-se da primeira modalidade de Transação por Adesão no Contencioso de Relevante e Disseminada Controvérsia – modalidade excepcional –, referente a juros de mora dos débitos de ICMS inscritos em dívida ativa no estado de São Paulo, prevista no artigo 43 da Lei 17.843/23.
Referido edital teve mais de 10 mil adesões, resultando no valor arrecadado de R$ 644 milhões nos meses de sua vigência (fevereiro a abril), com a projeção, para os próximos dois anos, de R$ 1,7 bilhão por ano[1].
Ultrapassado o prazo de vigência do referido edital, resta imprescindível destacar que a adesão à transação e pagamento do saldo final nela consolidado não são os únicos compromissos a ser cumpridos pelo devedor. Afinal, transação não é parcelamento.
Explica-se. No caso do parcelamento, sabe-se que o mesmo pressupõe edição lei específica do ente tributante prevendo suas condições e hipóteses de cabimento, nos termos do artigo 155-A do Código Tributário Nacional.
E, uma vez que o devedor atenda aos requisitos previamente previstos em lei, a doutrina entende que não há juízo de conveniência e oportunidade a cargo da Administração Pública para a sua oferta ao contribuinte[2].
A seu turno, a transação prevista na Lei 17.843/23 não garantiu, de imediato, qualquer direito líquido e certo aos devedores de créditos tributários e não tributários do estado de São Paulo, e sim forneceu ao ente paulista a possibilidade de realizar a transação, seja 1) por adesão, após a concordância, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, dos termos pré-determinados pelo estado de São Paulo em editais publicados; 2) por proposta individual, de iniciativa do sujeito passivo ou da própria Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.
Em outras palavras, embora tanto o parcelamento como a transação exijam lei específica para que sejam implementados pelos entes tributantes, é discricionário ao Estado de São Paulo o ato de publicar – ou não – editais de transação, bem como é discricionária a escolha dos critérios e das condicionantes para ambas as partes, desde que dispostos nos limites da lei.
Conforme destacado por Leandro Paulsen[3], na transação há a) a vontade de transacionar, manifestada pelo parlamento quando da edição da lei geral de transação e b) a vontade formalizada de transacionar no caso concreto, a ser exercida pela autoridade administrativa.
E, no caso do Edital 1/2024, além de haver o compromisso de o devedor assinar o termo de adesão, recolher a entrada de 5% do valor consolidado líquido do débito e de recolher em parcelas, se o caso, o saldo devedor remanescente (tal qual ocorreria em um parcelamento ordinário), o mesmo também deverá comprovar o cumprimento das obrigações previstas no respectivo termo de aceite e no Edital 1/2024.
Referidas obrigações não decorrem somente da atividade discricionária da Administração Pública realizada na confecção do edital, mas também da própria natureza do instituto, o qual exige, além do compromisso de pagamento do débito – à vista ou parcelado – o preenchimento dos requisitos no artigo 171 do CTN.
Independentemente da modalidade de transação a ser proposta pelo fisco e aceita pelo contribuinte (individual ou por adesão), ambas compartilham o denominador comum inerente ao próprio instituto: a necessidade de existência de concessões mútuas.
Fato é que tanto o artigo 841 do Código Civil de 2002 como o artigo 171 do Código Tributário Nacional preveem a transação como instrumento próprio para terminação de litígio mediante concessões mútuas, reforçando a certeza da intenção do legislador brasileiro quanto à natureza negocial do instituto, o qual exige contrapartida de ambas as partes para configurar sua própria existência.
Nas palavras de Sacha Calmon Navarra Coelho, “se apenas uma parte cede, não há transação, senão que ato unilateral capaz de comover ou demover a outra parte”.[4]
Nesse contexto, o Edital 1/2024 trouxe referido elemento essencial da transação para o fisco, de um lado, e para o contribuinte, do outro: ambos têm de ceder.
Do lado do fisco, as principais concessões consistiram: a) no desconto de 100% dos juros de mora; b) no desconto de 50% do débito remanescente, incluindo multas de quaisquer espécies, juros e encargos legais, após a dedução dos juros de mora; c) no parcelamento do débito em até 120 meses; d) na possibilidade de utilização de créditos acumulados de ICMS e de produtor rural para compensação da dívida; e) na possibilidade utilização de créditos consubstanciados em precatórios para compensação da dívida.
De fato, foram benesses jamais fornecidas antes ao contribuinte pelo estado de São Paulo, o que contribuiu para o fomento da arrecadação e para o retorno do devedor à conformidade fiscal.
Do lado do contribuinte, ainda resta a comprovação, a posteriori, de diversas obrigações elencadas no Edital 1/2024 e que são intrínsecas ao instituto.
Dentre as mais importantes, destaca-se primeiramente a necessidade de renúncia às ações, impugnações e desistência dos recursos que versem sobre a própria existência do débito objeto da transação.
Isso se deve ao fato de que o aceite à transação implica em reconhecimento do crédito tributário pelo devedor, o que torna a utilização da transação incompatível com o prosseguimento de eventuais ações antiexacionais, embargos à execução ou outros meios de impugnação que discutam a existência e exigibilidade do crédito já reconhecidamente devido.
Além disso, a transação prevista no Edital 1/2024 exigiu a oferta, a posteriori, de garantia (seguro garantia, fiança bancária ou imóvel próprio ou de terceiros) para os contribuintes que optaram pelo parcelamento do saldo final líquido consolidado de 60 a 120 meses.
Conforme previsto no instrumento convocatório, referidas garantias deverão ser oferecidas no prazo de até 90 dias do termo de adesão da transação, no bojo da respectiva execução fiscal, caso o débito esteja ajuizado.
Caso o débito transacionado não esteja ajuizado, o contribuinte anuiu, ao assinar o termo de aceite, com o ajuizamento de execução fiscal do débito para oferta da garantia junto ao Poder Judiciário.
Destaca-se, ainda, que os devedores aderentes ao Edital 1/2024 concordaram que arcarão com os honorários advocatícios devidos aos patronos e com as custas e as demais despesas processuais devidas nos processos judiciais que discutam o crédito tributário reconhecidamente devidos no acordo firmado.
Isso abrange, inclusive, os honorários judiciais já fixados em desfavor da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, nos casos de condenação por sucumbência recíproca.
Finalmente, coube ao contribuinte o compromisso de “não ingressar com ações judiciais, individuais ou coletivas, que tenham por objeto as dívidas incluídas na transação, uma vez que o aceite implica confissão irrevogável e irretratável dos débitos abrangidos pela transação, nos termos dos artigos 389 a 395 do CPC”.[5]
Os itens previstos nesse edital são imprescindíveis ao bom funcionamento do instituto não só no estado de São Paulo, mas em todos os entes que optaram pela transação como mecanismo consensual de cobrança do crédito tributário.
Referidos compromissos vão ao encontro dos princípios constitucionais e processuais positivados pelo Código de Processo Civil de 2015, o qual foi, inclusive, a força motriz da implementação da transação tributária no Brasil.
Conforme é sabido, embora a transação tenha sido originalmente prevista pelo CTN em 1966, foi apenas com a edição do CPC/15 que o instituto encontrou espaço para implementação na nossa legislação.
O novo Código de Processo Civil entrou em vigor para privilegiar a adoção de métodos consensuais de solução dos conflitos – inclusive tributários –, bem como para elencar importantes princípios que devem reger as relações entre as partes. Dentre eles, destaca-se o da boa-fé processual e da cooperação.
Em relação à boa-fé processual, Freddie Diddier[6] esclarece que sua previsão no CPC/15 é realizada na modalidade objetiva, ou seja, é uma regra geral de conduta a ser obedecida pelas partes do processo.
No caso das cláusulas de concessão pelo contribuinte na transação por adesão analisada, a serem comprovadas nos respectivos processos judiciais, observa-se a concretização do princípio da boa-fé processual na proibição do venirum contra factum proprium, ou seja, o aderente não deve persistir na discussão judicial do crédito tributário transacionado, vez que é comportamento contrário ao compromisso de terminação de litígio assumido para ter acesso aos descontos sobre os débitos acordados.
No que se refere à cooperação, deve-se honrar judicialmente o trato de renunciar à discussão do débito tributário transacionado, facilitando o processo de desjudicialização não só para o Estado, como para o contribuinte e o Judiciário.
Finalmente, reconhece-se que a discricionariedade na transação por adesão é limitada ao conteúdo do próprio edital, a fim de atender à justa expectativa dos aderentes[7] e que a oportunidade e a conveniência dada à Administração Pública é esvaziada, em grande parte, após a confecção do instrumento e após a escolha das cláusulas que nele devem constar.
Porém, deve-se ter em mente que, em sendo um acordo, também deve ser atendida à justa expectativa da Administração Pública de cumprimento das obrigações previstas no edital por parte do devedor, viabilizando a terminação dos litígios e permitindo a concretização da consensualidade.
Por todo o exposto, a análise do desempenho do papel dado ao devedor no Edital 1/2024 é de crucial importância ao sucesso do programa Acordo Paulista. A observância à boa fé e à cooperação do devedor na terminação dos litígios é essencial para analisar se o instrumento é verdadeiramente eficaz na solução consensual de conflitos tributários no estado de São Paulo.
Afinal, em sendo um acordo, seu bom funcionamento depende não só da existência de concessões mútuas, como também de confiança recíproca.
[1] Acordo Paulista encerra primeiro edital com mais de R$ 14 bi em débitos negociados. Portal da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, 02 de maio de 2024.Disponível em http://www.portal.pge.sp.gov.br/acordo-paulista-encerra-primeiro-edital-com-mais-de-r-14-bi-em-debitos-negociados/#:~:text=A%20previs%C3%A3o%20de%20arrecada%C3%A7%C3%A3o%20em,com%20os%20cr%C3%A9ditos%20em%20precat%C3%B3rios.. Acesso em 29 de maio de 2024.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo.: Saraiva: 2005, pg. 445.
[3] PAULSEN, Leandro. A Transação Tributária. Comentários sobre a Transação Tributária: à luz da Lei nº 13.988/20 e outras alternativas de extinção do passivo tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021, p. 313.
[4] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 2009, p. 772.
[5] Item 8.1.8 do Edital 01/2024.
[6] DIDIER JR., Fredie. Princípio da Boa-fé Processual no Direito Processual Civil Brasileiro e Seu Fundamento Constitucional. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 70, out./dez. 2018. Disponível em: < https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1183784/Fredie_Didier_Jr.pdf>.
[7] LUNARDELLI, Maria Rita Gradilone Sampaio; CONRADO, Paulo Cesar. Discricionariedade e Transação no Contencioso. Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 409.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo.: Saraiva: 2005.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 2009.
DIDIER JR., Fredie. Princípio da Boa-fé Processual no Direito Processual Civil Brasileiro e Seu Fundamento Constitucional. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 70, out./dez. 2018. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1183784/Fredie_Didier_Jr.pdf.
LUNARDELLI, Maria Rita Gradilone Sampaio; CONRADO, Paulo Cesar. Discricionariedade e Transação no Contencioso. Transação Tributária na Prática da Lei nº 13.988/2020. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
PAULSEN, Leandro. A Transação Tributária. Comentários sobre a Transação Tributária: à luz da Lei nº 13.988/20 e outras alternativas de extinção do passivo tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2021.