O papel do constitucionalismo transformador interamericano no direito brasileiro

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Inúmeros movimentos vêm remodelando o panorama contemporâneo do direito constitucional, permitindo a formação de um contexto de (des)construção do discurso tradicional, especialmente nos constitucionalismos periféricos. Estes caminhos plurais compartilham a frustração com o discurso constitucional hegemônico moderno e suas promessas não cumpridas.[1]

Na América Latina, destaca-se a desigualdade histórica e estrutural, a injustiça social, a violência sistemática e a necessidade de consolidação democrática, sintomas de um modelo colonial baseado na exploração e na discriminação. O colonialismo europeu estabeleceu sociedades fundadas na discriminação estrutural e no racismo institucional, persistentes nas estruturas jurídico-constitucionais.

Em resposta, diversas iniciativas latino-americanas têm se formado para reconstruir o constitucionalismo, comprometidas com a mudança social e enfrentamento das desigualdades. Este movimento diverso aplica-se a variados contextos, mas compartilha um objetivo comum: usar o constitucionalismo como ferramenta transformadora para os direitos humanos.

Somos uma região diversa com problemas comuns. Um projeto transformador pode enfrentar as raízes dessas violações de direitos humanos. Observamos a formação de ideias doutrinárias e uma postura ativa de transformação das realidades, avançando na tutela dos direitos humanos, na densificação do Estado de Direito e no fortalecimento democrático. Direitos humanos, rule of law e democracia: três noções umbilicalmente imbricadas, uma como condição necessária da realização da outra, aqui não apreendidas em perspectiva essencializada, mas justamente como processos de luta e construção constantes.

Assim, vemos surgir na paisagem regional um pensamento publicista abrangente[2], pautado pela estatalidade aberta[3] permeada pela internacionalização do direito constitucional e a constitucionalização do direito internacional[4]; de alto teor principiológico e com uma abertura dialógica que não só dá maior importância para o intercâmbio constitucional e o direito comparado como forma uma paisagem multinível do direito constitucional. Isto não significa que haja uma universalidade constitucional, mas os diálogos entre diferentes experiências constitucionais permitem demonstrar uma perspectiva mais ampla, por meio de comparações, sobre os diferentes papéis que a Constituição desempenha em relação à justiça social e as respostas às desigualdades.

Esses projetos transformadores são centrados, portanto na tríade diálogo, inclusão, pluralismo. A ideia de dialogar a partir da inclusão/igualdade é um conceito chave porque a exclusão, como expressão de profundas desigualdades, marca o nosso contexto da América Latina. É neste rumo que aponta o projeto transformador do constitucionalismo comum latino-americano (ICCAL[5]), fomentado por desafios compartilhados, pelo diálogo global-regional-local e pelo impacto da jurisprudência internacional e sobretudo interamericana, no marco de um novo Direito Público no século 21. Ver o direito constitucional por estas lentes traz uma virada epistemológica que amplia a latitude e seus fundamentos, propondo uma revisão crítica de suas estruturas.

O constitucionalismo transformador rompe com a visão exclusivamente estatal do fenômeno constitucional, abrindo-o para uma dimensão transversal, integrada, comparada e multinível.[6] Nesse cenário, o controle de convencionalidade é uma das ferramentas potentes para o diálogo em direitos humanos. A adequação da ordem jurídica nacional aos padrões regionais e internacionais é essencial para a proteção dos grupos vulneráveis.

O controle de convencionalidade harmoniza sistemas nacionais com padrões regionais, buscando justiça para as vítimas e celeridade processual, reforçando a posição dos juízes nacionais como garantidores primários de proteção. A Constituição nacional deve ser integrada com a ótica convencional, conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para demonstrar este cenário de impacto transformador de modo mais concreto permito-me trazer o caso da proteção dos direitos das mulheres. Mulheres obviamente no plural: mulheres não se limitam a um código binário homem/mulher, mas também abrangem raça, cultura e categorias de classe social. As mulheres não sofrem discriminação num vácuo, mas dentro de um contexto social, trazendo à tona o tema das interseccionalidades[7].

Não há como pensar na proteção constitucional das mulheres brasileiras e latino-americanas desconsiderando a convenção CEDAW e a Convenção de Belém do Pará; estas são fundamentais para a proteção das mulheres, sendo interpretadas evolutivamente pelos órgãos interamericanos. O controle de convencionalidade no direito das mulheres traduz-se em diplomas internacionais que garantem proteção especial e eficácia no ordenamento jurídico brasileiro.

Decisões emblemáticas do STF sobre direitos das mulheres mostram pontes dialógicas com o sistema interamericano. O Caderno de Jurisprudência do CNJ sobre direitos das mulheres destaca decisões como a da constitucionalidade da Lei Maria da Penha, interrupção de gestação de feto anencefálico e outras que pautam a igualdade de gênero nos âmbitos públicos e privado e que dialogam com os sistemas internacionais.

Avanços jurisdicionais e controle de convencionalidade também se refletem em progressos legislativos e de política judiciária. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, implementado no Brasil, é um reflexo direto dessa influência. Ele estabelece diretrizes para que os julgamentos considerem as desigualdades de gênero, promovendo uma justiça mais equitativa. A Resolução 492/2023 do CNJ, que torna obrigatória a capacitação de magistrados em direitos humanos, gênero, raça e etnia, também reflete essa perspectiva.

A Recomendação 123 do CNJ reforça a importância de aplicar os tratados internacionais de direitos humanos e a jurisprudência interamericana, promovendo o controle de convencionalidade em todas as esferas do Judiciário. O Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos, por sua vez, estabelece medidas concretas para a efetivação dos direitos humanos, como a promoção de diálogos entre juízes nacionais e internacionais e a inclusão de direitos humanos nos concursos para a magistratura.

A proteção dos direitos das mulheres é um exemplo claro do impacto transformador desse diálogo. Os diálogos interno-internacionais e o impacto interamericano têm sido fundamentais para a promoção da igualdade de gênero e a eliminação da discriminação. Casos emblemáticos, como os relacionados à violência contra a mulher, têm estabelecido precedentes importantes que orientam a interpretação das leis nacionais.

Este breve inventário de iniciativas demonstra o compromisso do Brasil com um direito constitucional transformador, capaz de enfrentar as desigualdades e promover a justiça social. O projeto transformador do constitucionalismo interamericano não é apenas uma teoria abstrata, mas uma prática concreta que influencia diretamente a vida das pessoas. Seu papel no direito constitucional brasileiro é fundamental para a construção de um Estado de Direito que respeite e promova os direitos humanos e avance na promoção da justiça social, sobretudo daquelas mais vulneráveis.

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Este texto foi escrito a partir da palestra proferida sobre diálogos transformadores entre o sistema interamericano e os sistemas nacionais no seminário sobre mecanismos nacionais de implementação das decisões estruturais ocorrido no STF, em 21 de maio de 2024, em evento organizado pelo STF, UMF-CNJ, Programa Estado de direito para América Latina da Fundação Konrad Adenauer e Max Planck Institut.

[1] Destaque-se em outra abordagem – SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi (Coord). Constitucionalismo Feminista: A proteção jurisdicional dos direitos das mulheres. Volume 3. Tirant Brasil: 24 abr. 2023.

[2] BOGDANDY, Armin Von; VENZKE, Ingo. ¿En nombre de quién? una teoría de Derecho público sobre la actividad judicial internacional. Bogotá: Universidad de Externado, 2016.

[3] MORALES ANTONIAZZI, M. El Estado abierto como objetivo del Ius Constitutionale Commune. Aproximación desde el impacto de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Em BOGDANDY, A. V.; FIX-FIERRO, H.; MORALES ANTONIAZZI, M., (coords.) Ius Constitutionale Commune en América Latina. Rasgos, potencialidades y desafíos. México: UNAM, 2014, 265-299.

[4] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, São Paulo, n.19, p.72, jan./jun. 2012.

[5] O ius constitutionale commune latino americano (ICCAL), inspirado na doutrina de Bogdandy, Morales, Piovesan et al.

[6] FACHIN, Melina. Constitucionalismo multinível: diálogos e(m) direitos humanos. Revista Ibérica do Direito, v. 1, n. 1, jan./abr. 2020

[7] CRENSHAW, Kimberlé W. Mapping the margins: intersectionality, identity politics and violence against women of color. Stanford Law Review, vol. 43, julho de 1991.