O papel da Advocacia Pública diante da emergência climática

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A emergência climática é um dos principais temas do momento. Nem parece que a preocupação da humanidade com a proteção do meio ambiente seja tão recente e tenha se iniciado apenas em 1972, com a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo.

À época, o seu objetivo não foi tão legítimo quanto possa parecer. Recém-saídos de suas colônias africanas e asiáticas, os países europeus, então impedidos da exploração em locais pródigos de florestas e minérios, adotaram o slogan do desenvolvimento sustentável. “Se eu não posso mais explorar, então vamos limitar as suas possibilidades”: esse foi o recado dado aos países ditos periféricos.

De lá para cá, ao longo desses pouco mais de 50 anos, o direito internacional evolui e imprimiu uma marcha de harmonização aos ordenamentos jurídicos domésticos. Diversos foram os tratados internacionais sobre a matéria, a maioria deles adotados internamente pelos Estados. Esse movimento, iniciado por um sistema normativo heterogêneo e descontínuo, repercutiu posteriormente nas jurisdições internacionais e nacionais.

Em nível supranacional, os Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos têm tido um papel relevante, especialmente na Europa e na América.

A Corte Europeia de Direitos Humanos julgou, até os dias atuais, 25 casos que envolvem a proteção do meio ambiente e tem mais dois processos em andamento. Se, de um lado, a Convenção Europeia jamais reconheceu o meio ambiente como um direito humano autônomo, de outro lado, a Corte Europeia concretizou a tutela ambiental por meio de uma leitura viva e dinâmica da convenção. Julgou procedentes ações importantes, como é exemplo o Affaire Tatar versus Romênia, cujos fatos são qualitativamente semelhantes aos desastres de Mariana e Brumadinho.

Dentre todas essas ações em trâmite, destaco três demandas que aportaram no sistema europeu de direitos humanos versando sobre emergência climática e aquecimento global. São os casos KlimaSeniorinnen contra Suíça, Carême contra França e Jovens Portugueses contra 33 Estados do Conselho da Europa.

Em 9 de abril de 2024, o primeiro deles foi julgado procedente e abriu as portas para uma mudança de precedentes na CEDH. A Corte reconheceu a responsabilidade do Estado demandado por descumprimento de sua obrigação positiva de reduzir o aquecimento global, relembrando que essa obrigação fora livremente assumida pelos Estados Partes na assinatura do Acordo de Paris.

A Corte destacou que é dever primordial do Estado adotar e aplicar medidas capazes de mitigar os efeitos atuais e futuros, potencialmente irreversíveis, das alterações climáticas. Esta obrigação decorre do nexo de causalidade entre as mudanças no clima e o gozo dos direitos garantidos pela convenção europeia, que é o principal instrumento de proteção dos direitos humanos em solo europeu.

O julgamento do caso dos Jovens Portugueses, ao que tudo indica, deverá seguir essa nova posição jurisprudencial e será ainda mais emblemático, na medida em que discute a obrigação positiva dos 33 Estados integrantes do Conselho da Europa de reduzirem o aquecimento do planeta, à luz do princípio da responsabilidade intergeracional.

Do lado de cá do Oceano Atlântico, o legado do sistema interamericano me parece ainda mais promissor. Em 2020, no julgamento do caso Nossa Terra versus Argentina, a Corte Interamericana reconheceu o óbvio ao afirmar que o meio ambiente é um direito humano autônomo, já que em um ambiente degradado as prerrogativas mais fundamentais dos seres humanos não podem ser usufruídas. O faz graças ao Protocolo de São Salvador, que acrescentara à Convenção Americana o artigo 26, que disse expressamente que “toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a dispor dos serviços públicos básicos”. Apesar da obviedade, essa lacuna, infelizmente, persiste no âmbito do sistema europeu.

Destaco, ainda, um feito positivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos: em meio a uma das piores catástrofes ambientais já vividas em solo brasileiro, com efeitos devastadores causados pelas chuvas no Estado do Rio Grande do Sul, a Corte realizou o 167º Período de Sessões Ordinárias no Brasil. Uma dessas sessões dedicou-se à realização de Audiência Pública para tratar da petição de parecer consultivo sobre “Emergência climática e Direitos Humanos”.

Trata-se de pedido formulado pela Colômbia e pelo Brasil à Corte IDH de um Parecer Consultivo para esclarecer as responsabilidades estatais, tanto individualmente quanto coletivamente, em lidar com a emergência climática, sob o norte do direito internacional dos direitos humanos. O Parecer ainda não foi emitido, mas merecerá grande atenção dos Estados.

Em nível nacional, por outro lado, a legislação brasileira evoluiu muito desde Estocolmo. Além de ter sediado a Rio92, de ter internalizado tratados internacionais importantes e de possuir um capítulo dedicado ao meio ambiente na Constituição Federal, merecem ser citadas a Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), a Lei nº 9.605/98 (Lei de crimes ambientais), a Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal) e a Lei nº 9.985/2000 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza). Além disso, a jurisprudência brasileira, em sua maioria, tem reforçado o propósito dessas normas.

Mas, diante de todo esse cenário, o que nós, Advogadas(os) Públicas(os), temos a ver com o problema?

Eu diria que muito. A começar pela premissa de que a proteção do meio ambiente se ancora no setor público e no setor privado. No primeiro caso, atua por meio de um tripé, composto pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Ainda que dependa de leis protetivas eficazes e do amparo de decisões judiciais que as reforcem, a efetiva proteção não tem início senão por políticas públicas ambientais bem elaboradas, que passam pela atuação da Advocacia Pública junto ao Poder Executivo, sobretudo a partir do assessoramento do gestor público no cumprimento das decisões emanadas em jurisdições internacionais e nacionais.

A depender de qual será o teor do Parecer Consultivo sobre emergência climática e direitos humanos, que deverá ser exarado pela Corte Interamericana ainda esse ano, terão papel protagonista em sua implementação a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias-Gerais dos Estados e dos Municípios, a fim de fazer cumprir a obrigação estatal de evitar ou de reprimir danos potenciais ou efetivos ao meio ambiente.

À Advocacia Pública também compete atuar no processo de identificação, implementação e/ou incremento de áreas de proteção ambiental e na adoção de regras para estudos de impacto e licenciamento ambiental, assim como na criação de novas políticas de prevenção e punição administrativas para casos de degradação ambiental.

Nos âmbitos legislativo e judicial, as(os) Advogadas(os) Públicas(os) são protagonistas no assessoramento do gestor para a elaboração de projetos de lei de sua iniciativa em matéria ambiental, na defesa normas em ações de controle concentrado de constitucionalidade, assim como na propositura de demandas em defesa do patrimônio público de cada um dos entes da federação.

E sim, se a emergência climática é um tema que nos inquieta a todos, nunca foi tão atual e indispensável o papel de Advogadas Públicas e Advogados Públicos, cuja atuação em defesa das presentes e futuras gerações é inarredável para o gozo dos direitos mais fundamentais de todo e qualquer ser humano.