Em função das medidas sanitárias adotadas na tentativa de conter o avanço da propagação da Covid-19, muitos países (inclusive o Brasil) adotaram medidas de lockdown, em que apenas estabelecimentos que exerciam atividades consideradas essenciais permaneceram abertos (como foi o caso de mercados, farmácias, petshops etc.).
Isso, no entanto, trouxe impactos à economia global e, como forma de preservar os setores turístico e de eventos – dois dos mais afetados pelo lockdown –, o Governo Federal publicou a Lei 14.148/2021, que instituiu o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse).
A medida concedeu alíquota zero de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins para 44 atividades econômicas (listadas em normas com base na CNAE), vinculadas aos aludidos setores.
O benefício foi concedido apenas às empresas que preenchiam certos requisitos impostos em lei, como, por exemplo, (i) a necessidade de regular inscrição, desde 18/3/2022, no Cadastur, para determinadas atividades, bem como (ii) a verificação de que o contribuinte já tivesse, em 18.03.2022, seu CNAE principal ou sua atividade preponderante dentre as listadas pela Lei do Perse. Trata-se, pois, de isenção condicionada.
Além disso, o benefício do Perse foi concedido pelo prazo de 60 meses, contados de 18/3/2022, de modo que representa, também, uma isenção concedida por prazo determinado.
Contudo, antes do transcurso dos 60 meses, o governo federal publicou a Lei 14.859, de 22/5/2024, que não apenas reduziu a quantidade de atividades beneficiadas, diminuindo o rol de 44 para 30 atividades, como também limitou a possibilidade de aproveitamento do Perse ao “teto” de R$ 15 bilhões, ficando a Receita Federal responsável por monitorar esse orçamento, mediante a divulgação de relatórios bimestrais.
Ocorre que, ao assim dispor, a novel Lei 14.859/2024 acabou por incorrer em clara inconstitucionalidade e ilegalidade. Explica-se.
A Constituição Federal, no inciso XXXVI de seu artigo 5º, insculpe o Princípio da Segurança Jurídica, que busca assegurar previsibilidade, de modo que ninguém venha a ser surpreendido com alguma imposição que viole o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.
O mencionado princípio também é aplicável ao Direito Tributário, de sorte que a lei tributária não pode causar insegurança aos contribuintes. Isso, inclusive, é reforçado por outros dois princípios conexos, quais sejam, a Irretroatividade Tributária e a Anterioridade (alíneas “a”, “b” e “c” do inciso III do artigo 150 da CF).
O que se nota, ao final, é que, em âmbito tributário, o Princípio da Segurança Jurídica (e os princípios que lhe são conexos) serve de verdadeira Limitação ao Poder de Tributar, estabelecendo obstáculos à atuação da Administração Pública, de modo que não seja estabelecida aos contribuintes uma carga tributária demasiadamente onerosa e de forma não prevista.
Mas não é apenas em âmbito constitucional que se verifica a tentativa de garantir o mínimo de previsibilidade aos contribuintes. É comum que se verifique, também, a edição de normas gerais de Direito Tributário, fundamentadas no inciso II do artigo 146 da CF, com esse intuito.
Nessa esteira, uma análise do artigo 178 do Código Tributário Nacional (CTN) – que é uma Lei Ordinária de 1966 (anterior à Lei Maior), mas que foi recepcionado com status de Lei Complementar pela CF de 1988, por força do § 5º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) –, permite verificar que, como forma de assegurar a Segurança Jurídica, o legislador pátrio garante aos contribuintes que uma isenção condicionada, concedida por prazo determinado, não seja revogada ou modificada (reduzida/restringida), nem mesmo por Lei.
Até porque, se o Poder Público concede uma isenção por determinado prazo, é dada a expectativa ao contribuinte de exercer seu direito por aquele período. Note-se que, em algumas situações, o contribuinte, inclusive, realiza um estudo mercadológico para verificar a viabilidade de cumprir os requisitos legalmente estabelecidos para a fruição do benefício, de modo que não pode, após isso, simplesmente ter sua expectativa de direito frustrada.
A despeito de todas essas garantias, o que se vê é que a Lei 14.859/2024 segue na contramão das previsões constitucionais e legais. Isso, porque, sendo o Perse uma isenção condicionada e por prazo determinado, não poderia tal benefício ter sido revogado ou restringido antes do transcurso do referido prazo, tal como feito pela Lei 14.859/2024, ao (i) retirar 14 atividades do Programa, e (ii) prever uma hipótese de revogação antecipada do Perse, se for atingido o “teto” de R$ 15 bilhões.
Assim, a Lei 14.859/2024 acaba não apenas por frustrar as expectativas anteriormente passadas aos contribuintes que eram beneficiados com o programa (violando, assim, o Princípio Constitucional da Segurança Jurídica), como, também, incorre em patente ilegalidade, por expressamente contrariar o quanto disposto no já mencionado artigo 178 do CTN.
Deste modo, resta aos contribuintes, nesse momento, depositar sua confiança no Poder Judiciário, que, enquanto garantidor de direitos, deve reconhecer a inconstitucionalidade e ilegalidade da Lei 14.859/2024, de modo que aqueles que foram prejudicados pela nova norma possam voltar a usufruir do benefício do Perse a que fazem jus.