O juiz que participa da fase da investigação preliminar de uma persecução penal, deferindo uma medida cautelar pessoal como a prisão preventiva ou um requerimento de produção de prova como a interceptação telefônica, pode depois julgar o mérito deste caso penal na fase processual?
Eis a pergunta que movimenta o debate em torno do juiz de – ou das – garantias.
No Brasil, a figura do juiz de garantias foi inserida no Código de Processo Penal em 2019 pela Lei 13.964/2019. Uma atuação institucional-corporativa da Magistratura, porém, fez com que rapidamente o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspendesse a vigência dos dispositivos inseridos no CPP que tratavam do juiz de garantias. Foi somente em agosto de 2023 – mais de três anos após a suspensão por decisão monocrática – que o plenário do Supremo decidiu pela implementação da figura do juiz de garantias, embora tenha feito algumas alterações em relação ao desenho original do legislador (ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).
Não pretendo, aqui nesta coluna que adota como pano de fundo temático o Direito Internacional, abordar o instituto do juiz de garantias conforme estabelecido no CPP e pelo STF, mas sim demonstrar como os órgãos e tribunais internacionais de direitos humanos têm respondido à pergunta colocada no início, principalmente a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Antes de interamericanizar o debate, precisamos passar pelo continente europeu, onde – pelo menos no âmbito da jurisprudência internacional – tem início a discussão sobre o exercício sucessivo de funções pelo mesmo juiz durante as fases da persecução penal. Conforme se verá a seguir, apesar de o assunto ainda gerar controvérsias no sistema interamericano, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos a resposta foi dada no mesmo período em que lançada a pergunta: a década de 80 do século passado.
Em 1982, quando do julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH inicia a construção de uma jurisprudência no sentido de que o juiz que participou da fase de investigação preliminar não oferece a imparcialidade objetiva para julgar o mérito do caso penal correspondente. Além de outros precedentes sobre a matéria, há o Caso De Cubber vs. Bélgica, julgado em 1984, quando o TEDH reitera a orientação firmada no Caso Piersack.
Antes de prosseguirmos, uma nota de metodologia sobre o estudo da jurisprudência internacional de direitos humanos: a leitura do inteiro teor é imprescindível. Extrair uma síntese objetiva do julgamento às vezes pode ser perigoso. O contexto é importante em alguns cenários.
Pois saibam que o contexto daqueles casos contra a Bélgica, que deram início à jurisprudência do TEDH a respeito do juiz de garantias, é absolutamente estranho à realidade do funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro. No Caso Piersack, o juiz que julgou o mérito do caso penal participou da investigação preliminar como membro do Ministério Público, ou seja, enquanto integrava outra carreira. E no Caso De Cubber, o juiz responsável pela decisão de mérito havia atuado na investigação como “juiz de instrução”, uma espécie de magistrado autorizado a investigar.
Além de a jurisprudência inicial do Tribunal Europeu ter se limitado – repita-se – a contextos muito peculiares, na mesma década, em 1989, quando do julgamento do Caso Haushildt vs. Dinamarca, o entendimento foi alterado para estabelecer que o fato de o juiz que vai julgar o mérito do caso penal ter atuado anteriormente em outra fase do procedimento, como na investigação preliminar, não implica automaticamente prejuízo para a sua imparcialidade, devendo-se verificar – vejam só! – o contexto e as características do caso concreto.
O Caso Hauschildt, sim, guarda semelhanças com o que se tem e se discute no Brasil. Isso porque foi um juiz que atuou na investigação preliminar, sem assumir qualquer papel incumbido à polícia ou ao Ministério Público, tendo, no entanto, decretado a prisão preventiva do investigado. Foi quando o TEDH disse claramente: a decretação da prisão preventiva na investigação pelo juiz que vai julgar o caso penal não prejudica automaticamente a sua imparcialidade, pois esse exame deve ser feito em cada caso concreto. E no Caso Hauschildt, embora tenha firmado essa “tese” – que é observada até os dias atuais –, o Tribunal Europeu acabou decidindo pela violação da garantia da imparcialidade, já que, ao decretar a prisão cautelar, o magistrado teria aprofundado muito no exame da culpa do investigado. Aqui não se tem, portanto, uma questão de se o juiz pode ou não atuar na investigação – ele pode! –, mas sim a necessidade de se ter cuidado com o limite argumentativo para não deixar pré-julgado o caso penal.
Voltemos para o sistema interamericano.
A Corte Interamericana ainda não abordou o assunto com a profundidade e a clareza encontradas nos julgados do Tribunal Europeu. Em 2019, verifica-se apenas uma rápida passagem em dois casos contra a Argentina (Hernández e Romero Feris), em que a Corte afirma que a decisão de decretação da prisão preventiva não deve ter nenhum efeito na decisão que vai julgar o mérito do caso penal, uma vez que “geralmente” é decretada por um juiz diferente daquele que finalmente toma a decisão sobre o mérito. O que significa isso, afirmar que “geralmente” a decisão é adotada por um juiz diferente? Significa que a Corte Interamericana às vezes parece “decidir não decidir” ou “esforçar-se para não ser bem compreendida”.
Em 2022, ao julgar o Caso Tzompaxtle Tecpile e outros vs. México, a Corte Interamericana parece adotar um tom mais impositivo a respeito do assunto, afirmando que “(…) em princípio e em termos gerais, esta decisão [de decretação de prisão cautelar na investigação] não deveria ter nenhum efeito sobre a responsabilidade do imputado, pois deve ser tomada por um juiz ou autoridade judicial diferente da que finalmente adota a determinação sobre o mérito” (§ 102).
Em 2023, quando do julgamento do Caso Scot Cochran vs. Costa Rica, a Corte Interamericana repete o que foi afirmado – laconicamente – no Caso Tzompaxtle Tecpile, exortando o Estado a alterar sua legislação interna sem, todavia, aprofundar no exame da questão e colocar de forma mais clara o seu entendimento (§ 125). No voto conjunto do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor e da juíza Patricia Pérez Goldberg, apresentado no julgamento do Caso Scot Cochran, há uma tentativa de avançar no exame da matéria, estabelecendo, inclusive, um diálogo com a jurisprudência do Tribunal Europeu – com menção ao Caso Hauschildt –, mas ainda assim a abordagem da jurisprudência europeia se mostrou incompleta, tendo sido sobrevalorizado o reconhecimento da parcialidade em detrimento do entendimento de fundo.
A implementação do juiz de garantias depende da movimentação de elevados recursos financeiros e de uma reestruturação orgânica-institucional da Magistratura. O impedimento do juiz que participou da investigação preliminar, deferindo uma medida probatória p. ex., para depois julgar o mérito do caso penal, parte de uma premissa que é subjetivamente presumida: “melhor julga quem desconhece o que foi investigado”.
É possível lutar por uma Magistratura imparcial sem acreditar nas promessas do juiz de garantias. Seja como for, o que se tentou mostrar nesse texto é que (1) desde 1989 o juiz de garantias não é uma imposição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e que (2) a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda não apresentou uma resposta clara e resolutiva sobre o assunto.