Nas audiências criminais é muito importante decretar a absolvição da ré no momento em que surge a dúvida da autoria ou materialidade do crime. Isto é o que chamamos de princípio do in dubio pro reo. E este princípio deve ser aplicado pelo juiz ou juíza na fundamentação da sentença como determina o dispositivo legal, artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal, por não haver prova suficiente contra a ré.
A mulher é aqui, a personagem principal, porque se tem observado em pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais que muitos julgadores não vêm aplicando o in dubio pro reo, desfavorecendo especificamente o gênero feminino.
O artigo do CPP mencionado acima impõe ao juiz que absolva a acusada se não há prova suficiente da autoria ou materialidade do crime do qual ela foi denunciada, ou seja, in dubio pro reo.
Isso devido à legislação entender que é melhor absolver uma mulher culpada do que condenar uma mulher inocente quando se tem dúvida de que ela cometeu ou não um crime.
O juiz precisa mencionar a causa da absolvição, ou seja, dizer que ficou em dúvida. Isto porque, ele tem que motivar a sentença, ou seja, fazer uma fundamentação jurídica da sentença, tornando expresso o motivo usado para se absolver a ré, isso é o in dubio pro reo.
A Constituição Federal garante a liberdade como um dos princípios fundamentais. Porque, não é difícil imaginar a instalação do caos se todos pudessem ser acusados sem provas robustas ou, como transcreve o artigo, no mínimo suficientes.
No advento da dúvida deve-se aplicar a absolvição e não uma medida cautelar. No momento da eclosão da dúvida, o princípio do in dubio pro reo puxa, prontamente, a absolvição para a acusada. Basta ao juiz ou juíza aplicar a lei.
Outro princípio é o da presunção de inocência, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e este princípio se encontra na Constituição Federal de 1988, no Art. 5º, inciso LVII. Portanto sua conceituação está enraizada na legislação brasileira.
Melhor dizendo, presume-se que a pessoa é considerada inocente até mesmo depois de uma condenação. Se condenada, somente depois do trânsito em julgado é que essa pessoa perde a inocência e passa a ser culpada.
A principal distinção entre os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência é que o in dubio pro reo impõe ao julgador a absolvição quando há o surgimento da dúvida da autoria ou materialidade do crime. Enquanto que o da presunção de inocência acompanha a pessoa acusada durante todo o processo e até mesmo depois da condenação, cessando sua proteção somente no fim do trânsito em julgado.
Existe, também, na atual jurisprudência a orientação do in dubio pro societate, que não encontra nenhum respaldo constitucional ou legal na normativa brasileira. Sua utilização também provoca desacertos na motivação da sentença. É o que afirma um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes: “Inadmissibilidade in dubio pro societate: além de não possuir amparo normativo, tal preceito ocasiona equívocos e desfoca o critério sobre o standard probatório necessário para a pronúncia.” (Brasil, 2020).
O ministro explica que o in dubio pro societate causa desvios na valorização racional da prova. Isto porque, para que haja um julgamento com o devido processo legal é necessário a valoração racional da prova contida no artigo 5º, LV, CF e pelo dever de motivação das decisões judiciais artigo 93, IX, CF (Brasil, 2020).
Para os juristas, Alexandre de M. da Rosa e Paulo Thiago F. Dias (2020), a aplicação dessa diretriz é indevida e desvirtuosa: “Ocorre que o in dubio pro societate não se presta a fundamentar qualquer ato decisório proferido em respeito ao texto da Constituição da República e à ciência jurídica. Simples. Essa regra é absolutamente desprovida de enunciado”. E eles completam: “O in dubio pro societate, por certo, não passa de mera camuflagem, por meio da qual se almeja ocultar a falta de fundamentos fáticos, teóricos, normativos e racionais do ato decisório”. (Rosa, 2020).
Isto quer dizer, que o in dubio pro societate não está constituído na legislação brasileira. E por isso, ele não serve para a motivação (fundamentação) da sentença jurídica. Mesmo porque, o in dubio pro societate não possui nenhuma referência direta na lei do Código Penal ou do Processo Penal no Brasil ou ainda da Constituição Brasileira. Sendo assim, o in dubio pro societate não é uma norma legal ou sequer princípio.
E ironicamente o in dubio pro societate, também, se utiliza da premissa da dúvida da incerteza da inocência da ré.
Porém, se há a incerteza da inocência também se tem incerteza da culpa. E neste caso a lei manda que se aplique o in dubio pro reo, ou seja, a absolvição em favor da ré.
O que importa é que existe na jurisprudência brasileira a disposição de julgadores em aplicar o in dubio pro reo na motivação da sentença, por ter restado a incerteza da autoria ou materialidade do crime, que nada mais é do que a dúvida razoável apontada pelo dispositivo legal do in dubio pro reo.
Dentro dos processos de posse criminosa de: drogas, armas, contrabando e pirataria, quando não se consegue provas robustas o in dubio pro reo também deve ser aplicado, favorecendo a mulher acusada com a absolvição.
Isso vem sendo aplicado nos casos conhecidos como “as mulas” em que mulheres, são usadas para fazer o transporte de posses ilícitas, na maioria das vezes com ameaça, coação ou simplesmente são enganadas. (Duarte, 2020).
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) vem assegurando a aplicação do in dubio pro reo nos casos comprovados de mulheres que são acusadas na condição de “mula”. Exemplo da Ementa: “Penal. Tráfico de entorpecentes. Negativa de autoria. Dúvida razoável. In dubio pro reu. Absolvição. Recurso da acusação conhecido e desprovido”. (Brasil, 2016).
A ementa esclarece: “Havendo dúvidas razoáveis sobre a conduta delitiva imputada ao acusado, porquanto inexistem elementos probatórios conclusivos, a incerteza deve ser interpretada em seu favor, impondo-se a absolvição”. (Brasil, 2016).
O julgador utilizou-se da dúvida nos elementos probatórios e admitiu a imposição da absolvição. Denunciada absolvida pelo in dubio pro reo: “Porte ilegal de arma (…) princípio do in dubio pro reo. A materialidade do delito de porte ilegal de arma resta configurada (…) Na ausência de prova conclusiva quanto a autoria, aplica-se o princípio do in dúbio pro reo. Recurso provido.” (BRASIL, 2006).
O dispositivo legal do in dubio pro reo existe, justamente e especificamente, para dar ao julgador o amparo e o respaldo legal para a fundamentação da senteça que liga à absolvição, pelo aparecimento da dúvida.
Também é preciso entender que a insuficiente produção de provas pode estar ligada à verdadeira inocência da ré. Mas, que não é essa a fundamentação jurídica do in dubio pro reo. Porque este princípio não invoca para a acusada a inocência e sim a absolvição se configurada a dúvida razoável.
Para infelicidade e injustiça de muitas mulheres, ainda há julgadores que preferem ver uma inocente presa que uma culpada livre! Quando na verdade, parece ser muito mais justo preferir assegurar a liberdade de uma pessoa humana inocente e deixar livre outras noventa e nove culpadas do que manter todas as cem presas sabendo que uma dentre todas essas pessoas é inocente.
O que se deduz é que se a dúvida sobre a autoria e ou a materialidade do crime aparece então é justa e tem fundamento legal a aplicação do princípio in dubio pro reo nos julgamentos das ações criminais. E, portanto, a absolvição deve ser decretada.
Deve-se insistir na importância de uma fundamentação da sentença justa. E que ela tenha um embasamento legal.
Também, se constata que a diretriz do in dubio pro societate tem causado, por seus fracos elementos, atenuações e até mesmo invalidações de fundamentações jurídicas de sentenças de juízes que as têm utilizado para condenações criminais.
Espera-se que os tribunais brasileiros possam oferecer um julgamento digno e justo, quando for necessário, a todas as mulheres brasileiras, independente de classe social; raça; ou identidade de gênero, cisgênero ou transgênero; aplicando-se o princípio legal do in dubio pro reo em favor da ré quando surgir a dúvida razoável.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo ARE 1067392. Relator Min. Gilmar Mendes. Segunda Turma. Julgado em 26/03/2019. DJe-167, Publicado em 02/07/2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: out./2023.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Apelação Criminal APR 20150110431158 (TJ-DFT). Publicado em: 29/02/2016. Disponível em: tjdft.jus.br. Acesso em: out/2023.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão 255646. 20020410113388APJ – (0011338-22.2002.8.07.0004 – Res. 65 CNJ). 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal. Relator: IRAN DE LIMA. Publicado no DJU SEÇÃO 3 : 05/10/2006. Disponível em: https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj. Acesso em: out./2023.
DUARTE, Joana das Flores. Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade* Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020. Disponível em: Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade* (redalyc.org). Acesso em: out/2023.
ROSA, Alexandre Morais da; DIAS Paulo Thiago Fernandes. A constante (e inconstitucional) presença do in dubio pro societate no STF. Consultor Jurídico. Pub.: 27/11/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-27/limite-penal-constante-inconstitucional-presenca-in-dubio-pro-societate-stf#_edn2. Acesso em: out./2023.