O ICMS sobre produtos importados por plataformas estrangeiras de e-commerce

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Nos últimos anos, o crescimento exponencial do comércio eletrônico internacional, impulsionado sobretudo por grandes plataformas digitais estrangeiras, trouxe à tona uma disparidade tributária que tem causado prejuízos crescentes à indústria e ao varejo nacionais.

Em especial, chama atenção o tratamento conferido às mercadorias importadas via remessas postais, submetidas ao chamado Regime de Tributação Simplificada (RTS), que conta com carga tributária notadamente inferior àquela incidente sobre produtos comercializados por empresas brasileiras.

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No âmbito estadual, a principal norma atualmente em vigor que regula a incidência do ICMS sobre essas operações é o Convênio ICMS 81/2023, celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Embora tenha como propósito regulamentar a cobrança do imposto sobre remessas internacionais submetidas ao RTS, sua aplicação tem perpetuado as distorções concorrenciais. Para compreendê-lo adequadamente, é necessário contextualizá-lo no plano constitucional, histórico e legislativo.

Historicamente, a Emenda Constitucional 33/2001 (EC 03/2001) modificou o art. 155, § 2º, inciso IX, alínea “a” da Constituição Federal, justamente para permitir a incidência do ICMS sobre a entrada de bens ou mercadorias importadas do exterior, por pessoas físicas ou jurídicas, ainda que não sejam contribuintes do imposto. O objetivo da emenda foi o de fechar brechas que permitiam a importação de bens sem o devido recolhimento do imposto estadual, como ocorria com bens adquiridos por pessoas físicas na década de 1990.

Antes da emenda, era comum que essas pessoas realizassem importações – de veículos, embarcações a eletrônicos – sem o pagamento do ICMS, o que afetava a indústria nacional. Desde então, o ICMS passou a incidir, em tese, sobre toda e qualquer importação, independentemente da habitualidade das aquisições pelo importador. A intenção do constituinte derivado era evidente: garantir isonomia tributária entre o produto nacional e o importado, independentemente do perfil do importador.

Entretanto, um regime paralelo continuou conferindo tratamento favorecido a determinadas importações. Trata-se do RTS, instituído pelo Decreto-Lei 1.804/1980, que previu um sistema simplificado de cobrança de tributos para encomendas internacionais de pequeno valor, remetidas via postal. À época, justificava-se o regime pela dificuldade administrativa de fiscalizar pequenos volumes e pelo custo desproporcional de operacionalizar a tributação dessas remessas, como bem explicou o então ministro da Fazenda, Ernane Galvêas.

Esse regime, porém, nasceu em um mundo pré-globalização, onde o comércio eletrônico sequer existia. Com o advento da internet e a ascensão das plataformas digitais, o volume e o valor das importações via remessa internacional aumentaram exponencialmente, tornando obsoleto o argumento de sua irrelevância arrecadatória.

Apesar da alteração constitucional promovida pela EC 33/2001, o ICMS continuava não sendo exigido, na prática, sobre remessas postais, principalmente por força do Convênio ICMS 18/1995, que previa a não incidência do imposto sobre remessas de até US$ 50 destinadas a pessoas físicas. Essa situação perdurou até 2020, quando foi editado o Convênio ICMS 114/2020, revogando a cláusula de isenção.

O movimento tinha lógica clara: o tratamento tributário privilegiado dessas remessas já estava afetando a arrecadação e gerando impactos severos sobre a indústria e o varejo locais. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Confederação Nacional do Comércio (CNC) indicam que, apenas em 2022, essa assimetria resultou na redução de 0,7% do PIB, perda de 466 mil empregos, R$ 20,7 bilhões em massa salarial e R$ 6,4 bilhões em tributos que deixaram de ser arrecadados (CNI/CNC, 2023).

As importações de pequeno valor saltaram de US$ 800 milhões em 2013 para US$ 13,1 bilhões em 2022, enquanto o número de remessas postais passou de 70,5 milhões para 176,3 milhões no mesmo período, segundo dados da Receita Federal (Boletim Aduaneiro 2023).

Nesse cenário, os Estados, por meio do Convênio ICMS 81/2023, decidiram regulamentar a cobrança do ICMS sobre essas remessas. O texto autorizava os entes federativos a reduzirem a base de cálculo do ICMS, de forma que a carga tributária final fosse de 17%, incluídos eventuais adicionais estaduais, independentemente da natureza do produto importado. Ainda que a alíquota interna do Estado seja de 18%, 20% ou até 22%, como ocorre em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, aplicava-se o percentual reduzido de 17%.

Posteriormente, o Convênio ICMS 135/2025 buscou mitigar esse efeito, permitindo que os Estados fixem a carga entre 17% e 20%, mas muitos – a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro – continuaram optando pelo mínimo permitido. O resultado é uma inequidade relevante: produtos nacionais ou nacionalizados seguem sendo tributados por alíquotas e bases de cálculo muito superiores àquelas aplicadas a produtos importados via remessa postal.

Essa sistemática viola o art. 152 da Constituição Federal, que proíbe diferenciação tributária entre bens em razão de sua procedência ou destino. Mais do que isso, fere o princípio da isonomia tributária e compromete os compromissos internacionais do Brasil no âmbito da OMC/GATT, que vedam tratamento desigual entre produtos nacionais e importados. Além disso, a renúncia fiscal concedida sem contrapartida social concreta afronta os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000, art. 14, §1º).

À primeira vista, portanto, o Convênio 81/2023 pode parecer um avanço em direção à uniformização da cobrança do ICMS sobre as importações de pequeno valor. No entanto, sua análise mais aprofundada revela que apenas reforça um modelo de tributação regressivo, sendo leniente com os grandes players internacionais, ao mesmo tempo em que mantém exigências fiscais e burocráticas rigorosas para o comerciante nacional — que, em regra, paga ICMS, PIS, Cofins, IPI, além de suportar obrigações acessórias e custos logísticos internos muito superiores. Essa política fiscal, dada a volumetria do comércio eletrônico internacional e sua crescente, fragiliza até mesmo a arrecadação estadual.

Se a intenção é estimular o consumo popular com acesso a produtos mais baratos, é preciso repensar a estratégia, propondo um caminho que promova a competitividade da indústria brasileira e valorize – sobretudo os pequenos e médios – varejistas que atuam dentro da legalidade.

Trata-se, portanto, de uma norma que, apesar de seu mérito aparente, precisa ser revista sob a ótica constitucional, legal e concorrencial. Do contrário, continuará sendo instrumento de desequilíbrio entre o comércio nacional e estrangeiro, com sérios prejuízos para a indústria, o varejo, os empregos e a renda dos brasileiros e, em última análise, a economia brasileira como um todo.