No Brasil, concursos públicos são a primeira e mais importante etapa de contratação de pessoas a partir das quais todas e quaisquer ações de governo podem se realizar. Nesse sentido, muito ao contrário de poder ser considerada uma etapa meramente burocrática da gestão pública, trata-se de um momento dos mais estratégicos para o sucesso de qualquer projeto de Estado voltado ao desenvolvimento nacional.
Deste modo, em contraposição ao modelo tradicional de concursos públicos, estudos ancorados na teoria da burocracia representativa indicam benefícios para a população quando o corpo de agentes públicos do Estado possui perfil socioeconômico, demográfico e territorial similar ao da sociedade em que se encontram. Sob esse aspecto, políticas de ação afirmativa já instituídas, como as cotas para pessoas negras e para pessoas com deficiência, são fundamentais para aumentar a representatividade e a aderência populacional no serviço público.
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Mas é preciso ir além. O instituto do concurso público deve permitir acesso amplo e isonômico da população, de tal forma a selecionar pessoas que representem as mais diversas camadas e regiões da sociedade, cada qual com sua trajetória e visão sobre o Brasil real. E, para isso, precisamos criar ambiência para a inovação e experimentar institucionalmente novos e melhores métodos de recrutamento e seleção de pessoas para o serviço público, respeitados os fundamentos constitucionais e legais do país.
Ciente disso, o governo Lula iniciou seu mandato em 2023 com a maior autorização simultânea de concursos públicos da última década. Em um balanço inicial dos concursos e provimentos autorizados no período entre 2023 a 2025, totalizam-se 30.573 vagas, com a seguinte composição.
Em 2023 foram autorizadas 9.066 vagas para abertura de novos concursos, das quais 6.640 fizeram parte da primeira edição do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) e 1.737 provimentos originários referente a vagas previstas em editais próprios que foram concluídos dentro do próprio ano.
Além disso, o Ministério da Gestão também autorizou a contratação de 9.009 vagas para contratação temporária, totalizando 20.871 cargos divididos nos seguintes setores: 2.882 para 11 órgãos da área econômica; 1.856 para 11 órgãos da infraestrutura; 5.141 para 15 órgãos da área social; e 1.983 para dez órgãos do setor institucional de governo.
Em 2024 foram autorizadas mais 10.702 vagas no total, sendo 1.289 na área econômica, 1.952 na infraestrutura, 4.473 para a área social e 3.088 para o setor institucional de governo. Cabe destacar que dessas todas, 2.282 foram destinadas para novos concursos públicos, 3.801 para contratação temporária, 1.418 para provimento originário, 1.469 para provimentos adicionais ao número previsto originalmente nos editais homologados.
Já em 2025, com a sanção presidencial do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), algo como 3.652 novas vagas comporão a segunda edição do CPNU, previsto para acontecer no segundo semestre deste ano, além de um quantitativo similar de vagas que farão seus concursos de forma independente.
Isto posto, é necessário lembrar que o modelo de concursos ancorado no CPNU não depende da criação de novos órgãos, nem da criação de estruturas administrativas que gerem custo adicional ao Estado.
Além disso, a própria execução da estratégia deflagrará trilhas de aprendizado institucional, cujos frutos retroalimentarão a melhoria da experiência e servirão de marco fundamental para a consolidação, em futuro próximo, de um modelo inovador e eficaz de seleção pública, que tem em seu centro o retorno do planejamento e da gestão estratégica de pessoas no âmbito federal brasileiro.
Em outras palavras, enfatizamos aqui o fato de que o CPNU é muito mais que uma ousada e necessária mudança de paradigma no que tange à forma de organizar e realizar concursos públicos no Brasil. Isso porque, como pequena fábrica de inovações incrementais,[1] ele carrega em si o poder de forjar mudanças igualmente paradigmáticas, tanto a montante como a jusante de sua própria realização.
À montante, quer dizer, como condições necessárias à montagem e realização futura de outros concursos públicos de amplitude nacional e confluência unificada, a institucionalização do CPNU exigirá que o órgão central de gestão de pessoas do governo federal assuma, crescentemente, funções de centralização, supervisão e transversalização de carreiras e respectivas vagas.
Ou seja, reforça-se de modo agudo a necessidade de se incrementar e praticar, de modo ainda não plenamente visto no país, o planejamento e o dimensionamento da força de trabalho a cargo do poder executivo federal. Há várias implicações derivadas dessa constatação, que não cabem aqui esmiuçar, mas que apenas o seu breve registro já sugere a envergadura do desafio posto ao Ministério da Gestão pela frente.[2]
Por sua vez, a jusante, isto é, como derivação da realização futuramente frequente de concursos públicos nacionais unificados, colocam-se questões que apontam, em primeiro lugar, para a necessidade de se comprovar, empiricamente, as hipóteses de conformação gradual de uma nova burocracia mais representativa da diversidade e complexidade nacional, tanto em termos geográficos como socioeconômicos e demográficos, fruto da estratégia de ampliação e democratização do acesso da população brasileira a certames dessa natureza.
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Mas indo além dessa mera medida de eficácia do CPNU, será preciso organizar processos periódicos de monitoramento e avaliação acerca das implicações práticas de uma burocracia mais representativa da sociedade brasileira sobre os processos governamentais de formulação, implementação, gestão, participação e controle das políticas públicas por meio das quais se organiza e se realiza a atuação federal sobre territórios, setores e populações do Brasil.
Tudo somado, e comprovadas ao longo do tempo as apostas originais que embasaram as decisões sobre a criação e efetivação do CPNU, estaríamos diante de mudanças institucionais qualitativamente muito positivas no âmbito das transformações procedimentais e substantivas que de fato nos interessam deflagrar no seio da administração pública brasileira.
Esta é, ao fim e ao cabo, parte importante da nossa utopia futurista para a construção de um novo Estado no Brasil. Mas para que o tempo nos dê razão, será fundamental superar ao menos 5 desafios do presente, expostos de maneira bastante clara por Coelho et alli (2024) no livro A saga do CPNU: inovação em serviços públicos e transformação do Estado para a cidadania.[3]
A primeira crítica se refere ao fato de as duas provas objetivas e a questão discursiva terem sido aplicadas no mesmo dia. Levanta-se aqui a dúvida sobre se tão poucas questões (20 questões objetivas gerais e 50 questões objetivas específicas em cada bloco temático) teriam sido suficientes para selecionar os “candidatos mais aptos” (pg 170).
Podemos contra-argumentar de duas maneiras: i) um dos objetivos do CPNU consiste justamente em alargar e democratizar o acesso e as chances de disputa das pessoas aptas a esta concorrência de vagas, de tal modo que um montante de nove vezes o número de vagas imediatas teve direito à correção da prova discursiva e apresentação de títulos; e ii) os resultados efetivamente coletados do certame demonstraram elevada qualificação dos candidatos aprovados, em todos os cargos disponíveis, haja vista não só as notas elevadas daqueles que foram aprovados, mas também a grande concorrência final entre eles.[4]
A segunda ponderação argumenta que “a não adoção de outros tipos de provas para avaliar atributos como habilidades práticas e mesmo competências comportamentais é, sem dúvida, o principal ponto crítico do CPNU” (pg. 171). Mas ora, apenas após a aprovação da Lei 14.965/2024, que se deu depois que o edital e primeiras etapas do CPNU já estavam correndo, é que provas para avaliar habilidades práticas e competências comportamentais poderão ser efetivamente previstas e realizadas nos futuros certames, com maior segurança jurídica.[5]
O terceiro ponto crítico reclama ser o curso de formação, como etapa subsequente e eliminatória do certame, exclusividade apenas de algumas poucas carreiras, o que poderia tornar desigual e prejudicar o processo de ambientação, acolhimento e alocação inicial dos servidores das demais carreiras.
Este aspecto pode ser retrucado com base nas seguintes evidências recentes: i) com raras exceções, cursos de formação como etapa eliminatória e classificatória de concursos públicos, possuem eficácia quase nula diante do que se propõe, pois apenas casos extremos de ausência de frequência ou baixo desempenho nítido costumam de fato implicar em desclassificação dos candidatos; ii) além disso, tais cursos, também com raras exceções, não atendem aos objetivos pedagógicos nem formativos que supostamente os sustentam, pois todos são realizados sob condições de competição e ansiedade que dificultam ou impedem a construção de ambientes seguros e saudáveis, bem como aprendizados efetivos para as pessoas que deles participam ainda como candidatos sujeitos à desclassificação; iii) com a publicação do Decreto 12.374/2025, que veio a regulamentar o novo estágio probatório de três anos, entendemos que seria muito melhor acabar com a maioria dos cursos de formação como etapa obrigatória e eliminatória dos concursos, transferindo para o novo formato de estágio probatório a missão pela formação efetiva e acompanhamento avaliativo anual até a superação dessa fase; iv) por fim, neste contexto atual de reativação dos concursos públicos, várias ferramentas e novas abordagens têm sido desenvolvidas para permitir a melhor recepção, alocação e ambientação inicial dos novos servidores concursados, a exemplo do Dimensionamento da Força de Trabalho, da Automação do Ingresso e do Perfil Profissiográfico, além da elaboração de Guias de Orientação aos órgãos e respectivos servidores e dirigentes responsáveis pelo recebimento, acolhimento, alocação inicial e acompanhamento dos mesmos ao longo de todo o novo Estágio Probatório.
Em quarto lugar, a crítica se dirige à imensa quantidade de vagas em um único concurso, chamando atenção, em especial, para as 900 vagas de AFT (Auditor Fiscal do Trabalho) e 500 vagas de ATPS (Analista Técnico de Política Social). Aqui, de fato, concordamos com a ideia de que o ideal seria haver um calendário mais regular e previsível de concursos públicos com menos vagas cada um, relativamente ao que foi o CPNU-1.
Porém, a realidade e a dinâmica política e institucional brasileira é cruel quanto a isso, já que são os governos progressistas ou conscientes da necessidade do Estado que, costumeiramente, se preocupam com e realizam concursos públicos. Dada a alternância de poder que felizmente caracteriza a democracia brasileira desde a CF-1988, tal aspecto gera, por outro lado, descontinuidades administrativas que se refletem, de tempos em tempos, em gaps geracionais de servidores públicos. Por isso, sempre que governos progressistas assumem o poder, sobretudo no plano federal, tendem a buscar maximizar a realização de concursos, visando à recomposição mínima ou parcial do estoque de servidores estatutários durante os seus mandatos presidenciais.
Por fim, a quinta crítica “refere-se ao padrão conteudista de grande parte das questões da prova objetiva de conhecimentos específicos dos diversos blocos do CPNU” (pg. 172). Sobre este ponto, de fato, há grandes melhorias possíveis a futuro, mas que para serem eficazes, demandarão ainda algumas rodadas adicionais de realização de novas edições do CPNU. Isso porque será a curva de aprendizado obtida com as sucessivas edições que permitirá acumular e moldar os conteúdos específicos e as melhores formas de sua aferição, relativamente aos respectivos blocos temáticos de cada certame.
Afinal, como quase tudo o mais que diz respeito ao CPNU, as soluções de momento, antes de serem inovações de processo ou de procedimento, terão sido problemas a enfrentar. Em outras palavras, o experimentalismo institucional que está na gênese e desenvolvimento do CPNU como fábrica de inovações para a realização de concursos públicos, é o mesmo que permitirá a construção e aprimoramento da curva de aprendizado deste modelo a futuro.
Para além das questões acima, a própria equipe responsável pelo CPNU já identificou um outro conjunto detalhado de problemas e desafios que precisam ser enfrentados a futuro, tais como: i) a necessidade de se produzir editais os mais precisos e corretos possíveis, de modo a evitarem-se as judicializações que sempre acometem os certames públicos no Brasil; ii) a necessidade de maior homogeneização entre as provas dos diversos blocos temáticos, em termos do grau de abrangência, complexidade e dificuldade das respectivas questões; iii) a necessidade de maior similitude entre as estruturas remuneratórias e perfis das carreiras e cargos em disputa dentro de cada bloco temático, de modo a se garantir que todos eles terão quantidade e qualidade suficientes de candidatos aptos, vocacionados e disponíveis ao preenchimento de todas as vagas; iv) os desafios logísticos e tecnológicos associados à realização de certames unificados, simultâneos e de abrangência nacional, por conta das questões de segurança, transporte e integridade física e jurídica de candidatos, colaboradores, materiais e regras do certame, ao longo de todo o processo de realização do mesmo, já que o mapa de riscos do CPNU é muito complexo, concentrado e visível aos atores interessados ou diretamente envolvidos no processo; e v) da mesma maneira, os desafios tecnológicos e inclusive estatísticos de organização e implementação, com segurança e transparência, dos critérios de classificação e aprovação dos candidatos, bem como de aproveitamento do cadastro reserva, tais como previstos nos editais.
Isto posto, e cientes de que o enfrentamento dessas questões faz parte do processo de aprendizado institucional em curso, tem-se que a sua resolução deverá reforçar os aspectos positivos já identificados e amplamente reconhecidos do CPNU, notadamente: i) ampliação e democratização do acesso da população em geral às vagas públicas; ii) possibilidade de escolha concorrencial amparada não apenas nas características gerais de perfil e remuneração dos cargos disponíveis, mas também levando-se em conta as formações acadêmicas, as vocações pessoais e os interesses profissionais de cada um; iii) integração e racionalização de recursos e processos administrativos e logísticos antes dispersos, permitindo maior economia de escala e escopo, eficiência, eficácia e efetividade da ação pública; iv) melhor gestão estratégica com vistas a garantir o máximo de segurança, transparência e integridade total do certame, da publicação do edital à homologação dos resultados finais; e v) maior clareza acerca das necessidades de pessoal da administração pública e das tendências a futuro das políticas e da ação do Estado, conectando concursos públicos ao projeto de desenvolvimento nacional no Brasil.
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Para este artigo, gostaria de agradecer as colaborações de Cida Chagas, Alexandre Retamal, Pedro Alves e Rafael Castro, isentando-os pelos erros e omissões ainda remanescentes nesta versão.
[1] Para tanto, ver CARDOSO JR., J. C. e ALVES, R. R. (orgs). A Saga do CPNU: inovação em serviços públicos e transformação do Estado para a cidadania. Brasília: MGI, 2024. Na Parte IV do livro, onde se faz o registro de todos os normativos que foram sendo necessários à estruturação e implementação do CPNU, desde sua origem institucional até a data de realização efetiva da prova em 18 de agosto de 2024. Por meio deles se verá que cada passo veio carregado de uma ou mais pequenas correções, adaptações e inovações incrementais que tanto deram respaldo e segurança jurídica ao certame como abriram possibilidades novas e mais flexíveis de aplicação e interpretação da legislação vigente sobre concursos no Brasil. Em particular, destaquem-se as inovações referentes à ampliação e aplicação da lei de cotas, a previsão de utilização do cadastro reserva para fins de contratação temporária na administração pública federal e o dispositivo de salvaguarda do concurso mesmo diante de situações calamitosas tais como a produzida pelas enchentes no Rio Grande do Sul.
[2] A rigor, idealmente, para uma efetiva institucionalização do CPNU a futuro, alguns passos deveriam ser buscados, tais como: i) desvincular a realização do certame da existência de vagas e ou de orçamento prévio; ii) realizar o CPNU de modo regular, sempre no segundo ano de cada mandato presidencial, com vigência de 2 anos, organizado por blocos temáticos genéricos sem vinculação prévia a vagas, cargos ou carreiras; iii) esse cadastro geral seria a primeira fase eliminatória objetiva do CPNU, e serviria de referência às seleções públicas setoriais específicas posteriores; iv) uma vez constituídos os cadastros por bloco temático, os órgãos da APF demandariam seus concursos ou fases adicionais específicas que apenas poderiam ser realizados tendo por universo de participantes os previamente classificados no CPNU; v) essas fases e etapas setoriais específicas precisariam ser obrigatórias e ficariam a cargo dos respectivos órgãos; vi) o tempo estimado de contratação poderia ser reduzido a menos de 6 meses frente o cenário atual; vii) a estratégia de transversalização de carreiras pelo MGI implicaria na necessidade de centralização progressiva e supervisão de grande quantidade de vagas.
[3] Ver COELHO, F. S.; RODRIGUES, A. L.; BERGUE, S. T.; LARA, L. R. Repensando os Concursos Públicos no Brasil em prol de uma Burocracia Representativa e Vocacionada: uma análise do CPNU. In: CARDOSO JR., J. C. e ALVES, R. R. (orgs). A Saga do CPNU: inovação em serviços públicos e transformação do Estado para a cidadania. Brasília: MGI, 2024.
[4] Ademais, como observa Ana Letichevsky da CESGRANRIO: “Quando uma prova é desenhada, o objetivo de cada item (ou questão) é avaliar em que medida o candidato domina um certo conteúdo e é capaz de articular tal conteúdo com uma ou mais habilidades para demonstrar o domínio de uma determinada competência. No caso de um concurso público, provas muito extensas ou com uma relação pequena entre o tempo de prova e o número de questões não são eficientes.” Por estas razões, “…nem a Teoria Clássica de Testes (TCT) e nem tampouco a Teoria de Resposta ao Item (TRI) são capazes de minimizar a probabilidade de acerto ao acaso. Seja na TCT ou na TRI a probabilidade de acerto ao acaso numa questão com 5 alternativas de resposta é sempre 20%. Além disso, há uma série de aspectos técnicos que impedem a utilização da TRI no certame em questão, entre eles a impossibilidade de realizar a equalização das notas.”
[5] A mesma Ana Letichevsky argumenta que: “Competências comportamentais não constituem etapa classificatória de concursos públicos, apenas competências cognitivas. Não há dúvidas de que o objetivo de um concurso público é selecionar os candidatos mais bem preparados para servir ao Estado e à população. O preparo de um candidato não é algo estanque que acontece de forma isolada em um cursinho ou durante poucos meses. O preparo de um indivíduo que opta por se candidatar a um concurso público ocorre ao longo de sua formação acadêmica e, mais ainda, ao longo de sua vivência profissional. E mais, a prova exigirá que o candidato demonstre, além de memorização, capacidade de interpretação, análise e avaliação.”