Continuando minhas considerações sobre o processo de privatização da Sabesp, trato agora do papel do (incógnito) plano de investimento, que tem grande importância neste processo de desestatização.
O Executivo paulista afirma que a privatização é necessária porque proporcionará mais dinheiro para investimentos que vão universalizar o abastecimento de água e esgoto tratado até 2029, quatro anos antes do prazo previsto na lei nacional de saneamento. O estado e a Sabesp, hoje, não teriam condições de fazer frente a vultosos investimentos (cerca de R$ 66 bilhões, segundo afirmado pelo governo estadual), sem que isso significasse aumentar em muito a tarifa; o dinheiro para investimentos, portanto, viria do setor privado, presumidamente pela capitalização da Sabesp.
Até o momento não está nada claro que esse montante declarado é um valor preciso. Ele não é muito distante dos R$ 56 bilhões que constam do plano de investimentos que a Sabesp teve de apresentar à Arsesp, em 2021, para provar que cumpriria as metas de universalização em 2033 – uma exigência do marco legal do saneamento.
Esses R$ 66 bilhões que o governo do estado menciona contemplam realmente todos os investimentos necessários à universalização? Como se calculou isso? É uma simples atualização por meio de um modelo econométrico do plano de 2021 ou houve um levantamento novo e exaustivo das obras necessárias à efetiva expansão da rede de água e esgoto na área de atuação da Sabesp?
O Executivo argumenta que esse número novo também decorre da inclusão de “áreas irregulares urbanas e áreas rurais” que não foram consideradas no plano de 2021. Seria interessante que houvesse um detalhamento de tais áreas a fim de analisar se tal inclusão foi integral, se a precificação foi adequada e se estamos trabalhando com números fidedignos às reais necessidades de investimento.
Seria muito ruim verificar que o principal aspecto fático legitimador do discurso da privatização – a necessidade de financiamento da universalização acelerada – seja uma simples estimativa cujos parâmetros não foram esclarecidos até aqui. Espera-se que, até a publicação do edital de privatização, esse estudo apareça. Os deputados paulistas votaram a autorização da privatização da Sabesp com bem menos informação do que terão os futuros participantes do leilão.
Para além de lançar dúvidas e suspeitas diversas sobre um tema que deveria evitá-las ao máximo, a apresentação prematura de um número de acurácia não verificável pode ter resultados regulatórios bastante ruins: isso porque, agora, com a publicação do edital, o Estado será induzido a apresentar um número muito parecido, senão idêntico, ao da misteriosa estimativa de investimentos que anunciou desde o início do processo.
Se os investimentos previstos no edital corresponderem a um valor menor, teremos um montante muito próximo ao valor que a Sabesp já estava preparada para gastar – o que diminuiria a força do discurso privatizador. Se o valor for muito maior, talvez isso lance dúvidas sobre o estudo que a Arsesp aprovou em 2021 e, certamente, colocará em dúvida o discurso do governo em favor da privatização. E se o valor for absolutamente correto, é de se perguntar: por que não foi exposto com clareza antes?
Se tivéssemos acesso aos dados que o governo do estado diz possuir, talvez pudéssemos discutir com mais propriedade a possibilidade de termos uma meta de universalização de esgoto tratado mais próxima à meta do abastecimento de água. De acordo com o marco legal do saneamento, entende-se como universalização o atendimento de 99% das residências com abastecimento de água tratada; porém, para o esgoto tratado, o índice é de 90%. Esses 9% podem parecer pouco proporcionalmente, mas talvez seja exatamente a diferença entre termos um rio Tietê finalmente limpo ou perpetuamente imundo.
É difícil ser contra a antecipação de qualquer meta relativa ao serviço de saneamento, mas será que a meta de 90% de tratamento de esgoto em 2029 é muito melhor do que, por exemplo, 90% em 2033 e 95% em 2036? A discussão sobre a velocidade e amplitude dos investimentos é uma questão central numa concessão de serviço dessa magnitude e importância social e ambiental.
Talvez estejamos diante de um contrassenso programado: o estado de São Paulo preparando uma campeã nacional, digo, uma “plataforma multinacional”, apta a “disputar com competitividade leilões de concessão pelo Brasil e em outros países” (as aspas são do governo paulista) ao mesmo tempo em que a integral universalização do esgoto não se coloca como objetivo de política pública.
Deixar de tratar o tema com transparência agora, com a devida exposição dos motivos que levaram ao estabelecimento de tais metas, pode suscitar pleitos posteriores por parte dos órgãos de controle e da sociedade civil – a experiência brasileira em concessões revela que o Judiciário não raramente assume o papel de “corrigir” ou “completar” obrigações relativas ao serviço que não foram previstas contratualmente.
Caso o contrato de concessão não deixe muito claro que o atendimento do esgoto tratado se expandirá após o atingimento da meta de 2029, teremos uma situação muito propícia à ampla judicialização no futuro próximo: uma gigante empresa privada, monopolista em quase 400 municípios do estado mais rico do país, que deixa lançar os dejetos de milhões de pessoas nos rios paulistas sem tratamento. As pessoas se indagariam, com razão: “Privatizaram a Sabesp para isso?”.
Examinar o plano de investimento também ajudaria a afastar receios de que a recente lei paulista armou uma verdadeira bomba regulatória, programando um inevitável pedido de reequilíbrio econômico-financeiro decorrente do fato de que a futura Sabesp terá de atingir uma meta de cobertura objetiva (99% de água e 90% de esgoto tratado até 2029) ao mesmo tempo em que talvez esteja obrigada a um plano de investimentos que, em alguma medida, especificaria as obras a serem realizadas.
No caso de tal plano não contemplar de modo integral todas as obras e intervenções necessárias ao cumprimento das metas estabelecidas na lei estadual, obviamente haverá um pleito de revisão do contrato. Imaginem a situação: o concessionário realiza todas as obrigações relativas a obras e investimentos ao mesmo tempo em que se verifica que o percentual de atendimento não foi alcançado – a Sabesp terá cumprido o plano ao mesmo tempo em que estará descumprindo as metas de universalização.
O volume de investimentos programados também diz respeito ao valor da tarifa. E aqui temos um dos pontos mais sensíveis não só da privatização, mas do marco legal do saneamento: há previsão de aumento do preço da água pelo simples fato de que é necessário muito investimento para atingir em 2033 as metas estabelecidas pela lei federal. Antecipar para 2029 tais metas obviamente implica gastar mais no curto prazo. A fim de evitar um aumento muito expressivo do valor tarifário, o governo paulista criou um mecanismo de subsídio. É dele que tratarei no próximo artigo.