Era 4 de agosto de 2022. O então presidente Jair Bolsonaro (PL) seguia sua pregação contra as urnas eletrônicas e clamava que os militares fiscalizassem as máquinas para ver se nada de errado aconteceria na votação. Em um evento em São Paulo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pedia paz nas manifestações de 7 de setembro e dizia que “nenhum poder se sobrepõe a outro. Nenhum poder pode ultrapassar seus limites”.
Só que naquele dia, sem ninguém perceber, a Câmara dos Deputados promoveu uma mudança em seu regimento que desmantela o equilíbrio previsto na Constituição entre as duas Casas do Congresso. Uma mudança que, unida a outras pretendidas por Lira, como no rito das Medidas Provisórias, basicamente esvazia o Senado Federal de atribuições, tornando-o inútil.
Até aquela data, se a Câmara aprovasse um projeto e enviasse ao Senado, a proposta dos deputados teria preferência sobre matérias do Senado com o mesmo tema. A mesma coisa ocorreria com um projeto aprovado no Senado e enviado à Câmara – um entendimento bem óbvio de que a proposta mais adiantada, que já passou por uma Casa, tem preferência.
Isto estava previsto de forma recíproca nos regimentos das duas Casas do Congresso. Mas a Resolução da Câmara dos Deputados 33/2022, publicada no Diário Oficial em 4/8/2022, passou a prever que terá precedência na Câmara a mais antiga das proposições em tramitação, necessariamente, “na Câmara dos Deputados”.
Isso quer dizer que qualquer projeto da Câmara, mesmo que parado há anos, terá preferência sobre uma proposta de mesmo tema aprovada e encaminhada pelo Senado. Em um Congresso no qual deputados e senadores apresentaram, ao longo de 2023, mais de 7.000 propostas legislativas, é praticamente impossível que o Senado envie à Câmara um projeto sobre um tema que nunca tenha sido objeto de nenhuma proposta existente lá.
Assim, toda proposta do Senado, ao chegar à Câmara, torna-se um “apensado”, ou seja, é anexada ao projeto dos deputados – por consequência, a Câmara sempre terá a palavra final, pois votará o projeto, enviará ao Senado que já o analisou e, se os senadores fizerem alterações, a Câmara poderá desfazê-las.
A manobra foi percebida pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE) em setembro do ano passado, ao ver que um Projeto de Lei de sua autoria, sobre prorrogação de prazos em cursos de graduação e pós-graduação nos casos de maternidade, paternidade e de adoção, tinha sido apensado a um texto da Câmara. Começou a vasculhar e detectou mais de duas dezenas de propostas oriundas do Senado que estão na mesma situação, incluindo o projeto que regulamenta o mercado de carbono no Brasil.
Alessandro apresentou um mandado de segurança no STF, que foi arquivado sob o argumento de que seria mais adequada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Mesa do Senado. Na semana passada, diante de um plenário esvaziado pelo pré-Carnaval, o senador foi à tribuna expor a situação.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prometeu que vai procurar Lira para pedir a reversão da mudança – o que parece singelo considerando a pouca disposição do presidente da Câmara em perder poder. Se não der certo, vai recorrer à Justiça ou até fazer a mesma alteração no regimento do Senado. Aí a bagunça estaria completa e nada andaria em lugar algum.
Câmara e Senado estão em choque desde o início do ano passado por conta do rito de tramitação das Medidas Provisórias. Lira argumenta que as comissões mistas deveriam ter mais deputados do que senadores em sua composição, por serem 513 de um lado e 81 do outro. Ocorre que, na tramitação normal de uma MP, ela é votada pela comissão mista (com igual número de parlamentares das duas Casas), depois vai à Câmara, ao Senado e, se houver alterações, retorna à Câmara. A mudança demandada por Lira, com maioria na comissão, faria os deputados prevalecerem em todas as fases do processo. Ao Senado, restaria carimbar.
Não deixa de ser irônico que, nas discussões sobre o futuro político de Lira, seja aventada a possibilidade de ele concorrer ao Senado em 2026. A prevalecerem as mudanças no regimento e nas MPs, o Senado perderá todas as atribuições preconizadas pela Constituição e se tornará nada além de uma sub-Câmara, menor e sem poder decisório, meramente figurativa. Não haverá nada para Lira fazer lá.