Recentemente, ao discutir os casos Loper Bright Enterprises v. Raimondo e Relentless, Inc. v. Department of Commerce, a maioria conservadora da Suprema Corte dos Estados Unidos revogou um dos mais importantes precedentes do direito administrativo norte-americano, o famoso caso Chevron, de 1984.[1] Trata-se de um caso julgado há 40 anos, a partir do voto condutor do relator, o juiz John Paul Stevens. Chevron tornou-se peça-chave do Estado regulador nos EUA por ter estabelecido critérios para a divisão de responsabilidades entre agências reguladoras e juízes.
De forma resumida, a chamada doutrina Chevron se traduz em um teste por meio do qual se verifica em que medida o regulador (Poder Executivo), ao interpretar uma lei que tem sentido ou redação ambíguos ou vagos, pode ou não ter suas decisões revistas pelo Judiciário. A discussão havida em Chevron decorre do fato de que a Constituição norte-americana – assim como a brasileira – não delineia de forma explícita em que termos o poder ou autoridade normativa federal (previsto em lei) pode ser delegado a agências reguladoras encarregadas de implementar políticas públicas ou regulatórias – no caso Chevron, de proteção ambiental.
O juiz Stevens, ao interpretar o sentido ambíguo do termo source – constante no Clean Air Act, entendeu – entendeu em seu voto que o Congresso americano havia delegado à agência reguladora EPA poder normativo para delimitar seu sentido concreto (isto é, especificando o que é “source” ao pôr em prática a legislação de proteção do meio ambiente), deixando com isso claro que o Judiciário, que não é um poder político (isto é, juízes não são eleitos), deveria prestar deferência à decisão administrativa (da EPA).
Vale dizer: se o congresso promulga uma lei que contém uma ambiguidade (ou à qual falta especificação ou detalhamento), tal fato pode traduzir uma delegação implícita do Legislativo ao Executivo na implementação do direito regulatório (referido em Chevron como policy), razão pela qual os tribunais não poderiam rever (ou modificar) interpretações administrativas, exceto quanto arbitrárias, caprichosas ou manifestamente contrárias ao texto da lei federal.
Em termos práticos, o teste criado pela doutrina Chevron previa, em duas etapas, o seguinte teste: em primeiro lugar, constata-se a existência de ambiguidade na legislação que delega competência para o regulador (sendo essa delegação deliberada ou não). Caso identificada uma ambiguidade, verifica-se, em um segundo passo, se a medida adotada no caso concreto decorre de uma interpretação razoável da legislação que atribuiu competência ao regulador. O resultado da aplicação dessas duas etapas acaba definindo o papel do Poder Judiciário ao avaliar (e eventualmente reverter) a atividade administrativa.
Chevron, assim, é uma decisão associada a um importante pano de fundo: o debate crucial sobre os temas da separação de poderes, delegação legislativa, reserva legal e limites do poder normativo da regulação em casos nos quais uma determinada lei é objeto de decisões administrativas no exercício do poder normativo de uma agência. São essas características que evidenciam a importância do precedente Chevron para o direito administrativo e econômico.
No Brasil, o exercício de poder normativo por órgãos reguladores também enfrentou, historicamente, questionamentos, tanto no campo das construções doutrinárias, quanto na jurisprudência. Vale dizer: a possibilidade de órgãos qualificados como autarquias especiais, dotados de autonomia e independência, exercerem competência normativa a partir de “leis quadro”, vem sendo fortemente debatida no direito nacional. Não há consenso formado, o que gera uma lacuna não trivial na construção paulatina e desafiadora do arcabouço regulatório do país.
Nesse contexto, surge a pergunta: qual seria, no caso brasileiro, a importância da revogação da doutrina Chevron? Que repercussão a recente decisão da Suprema Corte dos EUA poderá causar no direito brasileiro no que se refere aos temas da delegação legislativa e do poder normativo da regulação no Estado de Direito?
Como se sabe, o modelo de Estado regulador implementado na década de 1990 no Brasil é em boa medida inspirado na experiência norte-americana. As agências reguladoras que criamos aspiram ter autonomia e capacidade normativa para desempenhar as missões legislativas e de política pública para elas concebidas, tal como suas congêneres nos EUA.
Para tanto, precisam poder interpretar o direito contido nas normas que disciplinam suas competências, mesmo quando (o que é muito frequente) tais normas não são inteiramente claras. O direito nasce com a promulgação das leis, com sua interpretação por parte de juízes, mas também como resultado da interpretação da qual precisam se desincumbir os reguladores, que compõem a burocracia (no melhor sentido weberiano da palavra) do Estado brasileiro.
Diante disso, seria natural questionar se a revogação da doutrina Chevron poderia, de alguma forma, ensejar algum impacto no equilíbrio do arranjo institucional que tem viabilizado (ainda de forma imperfeita) o funcionamento das agências reguladoras brasileiras nos últimos 30 anos. Como mencionado, vários casos julgados pelos tribunais brasileiros discutiram, sob diferentes abordagens, o espaço para o exercício de poder normativo por parte das agências reguladoras no Brasil. Relativamente poucos, no entanto, mencionaram expressamente a doutrina Chevron em sua fundamentação, em especial no caso do Supremo Tribunal Federal, mesmo sendo o conceito de deferência técnico-administrativa seja claramente aplicado pelo Poder Judiciário.
Essa posição de deferência ao regulador tem sido aos poucos construída, delimitada e aplicada (evidentemente) à luz da nossa Constituição, da Lei 13.848/2019 e da legislação específica e aplicável a cada uma das agências reguladoras. O precedente estrangeiro, por isso, constitui um reforço argumentativo, um plus cuja revisão não deveria causar impacto estrutural nas decisões brasileiras.
A própria decisão da Suprema Corte dos EUA destaca, aliás, que o uso do caso Chevron como precedente não significa necessariamente que ele precisa ser inteiramente superado, mesmo no contexto norte-americano.[2] Também será necessário observar e compreender as balizas que passarão a ser utilizadas pelo controle judicial norte-americano a partir da superação do precedente de 1984.
Portanto, embora Chevron seja (ou tenha sido) um precedente relevante, não vemos espaço para que movimento similar avance em termos práticos para alterar o cenário em que se inserem as agências reguladoras no Brasil, isto é, para tolher o exercício do poder normativo, essencialmente discricionário, da regulação. Mas isso não significa que por aqui já não existam desafios suficientes, inclusive quanto a um delineamento mais claro acerca das condições e limites para o exercício do poder normativo por tais entes.
Na realidade, o debate sobre Chevron nos EUA mais serve para jogar luz sobre a importância – a premência, na verdade – de que o direito brasileiro avance na construção de entendimentos mais sólidos sobre a extensão e o controle do poder normativo da regulação. Vale frisar: ainda não há entre nós, nos tribunais, algo que se possa chamar propriamente de uma jurisprudência clara sobre a extensão do poder normativo da ação reguladora.
A discussão sobre esse assunto hoje se encontra fragmentada em meio a um conjunto de decisões sem coesão e coerência. O STF não produziu, em outras palavras, um entendimento unificado e suficientemente abrangente sobre o que significa, na prática, o exercício de poder normativo por órgãos reguladores federais.
O problema é que sem parâmetros claros – ainda que se admita que tais parâmetros sempre dependam do contexto e das leis setoriais ou marcos regulatórios em cada caso –, a atividade reguladora, que é, inexoravelmente, criadora do direito, fica sujeita a questionamentos judiciais frequentes. Isso gera insegurança jurídica e suscita embates por vezes desnecessários sobre a legalidade da ação reguladora.
Na prática, a lacuna existente sobre como reconhecer e atribuir, com limites de capazes de assegurar controle democrático, poder normativo à regulação termina abrindo flancos para que a efetividade e a legitimidade das agências sejam mitigadas. Já passou da hora, enfim, do Judiciário brasileiro – a começar por seu mais elevado tribunal – enfrentar diretamente o tema para enunciar e unificar seu entendimento. Na contramão da tendência hoje vista na Suprema Corte dos EUA, não nos faria mal ter um precedente claro, que reafirmasse a competência normativa das agências reguladoras, para fortalecer as capacidades estatais das quais o Brasil precisa para regular adequadamente sua economia. O futuro do Estado regulador brasileiro depende disso.
[1] Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc. (1984).
[2] “Mere reliance on Chevron cannot constitute a “‘special justification’” for overruling such a holding, because to say a precedent relied on Chevron is, at best, “just an argument that the precedent was wrongly decided” (Loper Bright Enterprises et al v. Raimondo, Secretary of Commerce et al).