A análise do tratamento conferido ao teletrabalho pelas propostas do Grupo de Trabalho da reforma administrativa revela uma contradição insuperável entre o discurso oficial e a realidade normativa projetada. Enquanto a PEC 38/2025 alardeia um “eixo digital” e institui a “transformação digital” e o “governo digital” como diretrizes de Estado, o projeto de lei do Marco Legal opera uma contração drástica e injustificada do trabalho remoto, impondo uma mentalidade analógica a uma administração que se pretende do futuro.
Há uma esquizofrenia legislativa: a reforma promete um governo digital para o cidadão, mas acorrenta o servidor à repartição física por meio da regra do Artigo 21, § 2º, que exige que, no mínimo, 80% da carga horária seja presencial. Ignora-se, assim, que a digitalização deve ser um vetor de eficiência e conforto tanto para o administrado quanto para o servidor público, que é, antes de tudo, um trabalhador titular de direitos sociais e um cidadão destinatário da própria política de modernização. Se o serviço é digital, a presença física do operador do sistema, muitas vezes, torna-se irrelevante para a entrega do produto, servindo apenas a uma cultura de controle visual ultrapassada.
O retrocesso é tão acentuado que a proposta consegue ser conceitualmente mais atrasada do que a Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017). Naquele contexto, o legislador, apesar das críticas aos direitos suprimidos, compreendeu que o teletrabalho é um elemento de desburocratização e modernização das relações laborais. Agora, a pretexto de “modernizar” e “desburocratizar” o setor público, a reforma administrativa ordena um regresso ao presencialismo rígido e desconfiado.
Ao fixar em lei federal uma cota rígida onde o teletrabalho integral não pode superar 20% da força de trabalho, a proposta viola frontalmente as autonomias administrativas constitucionalmente asseguradas aos Poderes e aos órgãos autônomos. Engessa-se a organização administrativa de realidades díspares: um tribunal totalmente digitalizado ou um órgão de tecnologia da informação não podem ser submetidos à mesma lógica de presença física de uma unidade de atendimento de saúde ou segurança.
A reforma também comete o erro crasso de ignorar o aprendizado institucional acumulado durante a pandemia de Covid-19. A crise sanitária funcionou como um laboratório forçado que demonstrou, na prática, que grande parte das atividades burocráticas e intelectuais não apenas poderiam ser realizadas remotamente, como ganharam em eficiência e produtividade nesse formato.
Desde o fim da emergência sanitária, a administração pública já vinha operando um ajuste natural e orgânico, com o retorno das atividades inadiavelmente presenciais e a manutenção do remoto onde ele se provou superior. A imposição legal de um teto de 20% para o teletrabalho ignora essa calibração baseada na experiência real e impõe uma volta ao passado baseada em dogmas, desperdiçando a oportunidade de otimizar o uso dos espaços físicos e o tempo de deslocamento dos servidores.
Um dos pontos mais críticos e conceitualmente equivocados da proposta é a transformação do teletrabalho de “política institucional” em “prêmio individual”. O Projeto de Lei Complementar, em seu Artigo 29, inciso V, estabelece que a pontuação na avaliação de desempenho será critério de preferência para a seleção ao teletrabalho.
Essa lógica é perversa e ineficiente. O teletrabalho não deve ser uma medalha para o “bom servidor”, mas sim uma política pública e institucional que serve como pressuposto para o bom desempenho. Se um servidor produz mais e melhor em ambiente remoto, com maior concentração e qualidade de vida, o teletrabalho deve ser a ferramenta fornecida pela administração para potencializar esse resultado, e não uma recompensa posterior condicionada a disputas internas. Transformá-lo em prêmio deturpa sua natureza de ferramenta de gestão e cria assimetrias injustificáveis dentro das equipes.
Por fim, o que se aguardaria de uma reforma administrativa sintonizada com uma sociedade digital seria o aprimoramento do instituto, garantindo que a modernidade não significasse precarização. O texto, no entanto, vai na contramão: ao invés de assegurar ao servidor em teletrabalho mínimas condições de ergonomia, equipamentos adequados, custeio de internet e treinamento específico, o Projeto de Lei institucionaliza a transferência do custo da atividade pública para o particular. O artigo 21, § 1º, inciso II, determina expressamente que o servidor deve “providenciar e custear a estrutura necessária”, transformando o teletrabalho em uma redução salarial indireta.
Perde-se a oportunidade de regulamentar o direito à desconexão e à saúde no ambiente virtual para instituir um modelo híbrido que combina o pior dos dois mundos: a rigidez do controle presencial do século XX com a precarização de custos e a dissolução de fronteiras laborais do século XXI.