O direito de remuneração dos autores no substitutivo do PL 2370/2019

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A regulamentação dos direitos autorais no ambiente digital é uma demanda antiga, presente desde os debates públicos impulsionados pelo Fórum de Direitos Autorais, promovido pelo Ministério da Cultura (MinC) durante o segundo Governo Lula, de 2006-2010. A proposta de reforma do MinC de então era abrangente, modernizadora e equilibrada, mas sequer chegou a ser submetida ao processo legislativo.

Já em 2019, a Deputada Jandira Feghali propôs o Projeto de Lei 2730, que é fortemente estruturado a partir do anteprojeto de reforma consolidado no governo Lula 02. Ambos propõem alterações substanciais no sistema de direitos autorais, que o tornaria não só mais equilibrado como também mais apto a lidar com os desafios digitais que continuam a se acumular. Já bastante discutido, careceria de poucos ajustes.

A opção, no entanto, parece ter sido de rejeitar os debates e conhecimento acumulado e privilegiar uma proposta contida e restrita, provavelmente por razões de viabilidade política de aprovação, já que as chances de aprovação de algo grandioso em direitos autorais são reduzidas. Submetido um substitutivo ao PL 2370/19, de relatoria do Deputado Elmar Nascimento, em 12 de agosto de 2023, algumas das questões sobre os direitos autorais na internet foram focalizadas, com destaque para o dever de remuneração, por parte das plataformas, pelo uso de obras protegidas.

Certamente louvável é a iniciativa de promover esta regulamentação – afinal, são muitos novos usos desde a web 1.0.  A proposta tem inúmeros méritos, mas, também, inevitavelmente, algumas inadequações que, com alguns ajustes, podem ser afastadas.

Então, partindo da premissa de que o debate sobre a proposta atual, e ao menso alguma regulamentação dos direitos autorais na internet são necessários, a nossa análise está dividida em duas partes, nas quais enfrentará quatro aspectos que consideramos relevantes, insuficientes ou inadequados. Dedicamos este primeiro artigo exclusivamente às questões que afetam mais diretamente autores, artistas e intérpretes, especificamente o dever de remuneração pelas plataformas (e titulares) e o direito de remuneração obrigatória aos autores e artistas.

Dever de remuneração compulsória pelas plataformas

Elemento propulsor das propostas de alteração dos direitos autorais em 2023 é a instituição de um dever de pagamento pelas plataformas em razão da disponibilização por terceiros de material protegido por direitos autorais. A proposta apareceu pela primeira vez no PL das Fake News (2630/20) no substitutivo encaminhado pelo Deputado Orlando Silva, ao final do mês de abril.

O texto de então continha as premissas estruturais da cobrança, a ser feita por entidade de gestão coletiva especialmente criada para este fim. Entretanto, a multiplicidade de temas incorporados no PL das Fake News levou ao seu emperramento político e, deste então, não houve nova movimentação. Neste contexto, as iniciativas de remuneração por parte das plataformas para os direitos autorais e o jornalismo foram destacadas e migradas para o substitutivo do PL 2730/19 – e aqui só vamos tratar da parte dos direitos autorais.

Com relação ao núcleo essencial da proposta – artigos 88-A e 88-B, que dizem respeito à obrigatoriedade de remuneração dos autores, artistas e demais titulares pelas plataformas por usos feitos de obras autorais por meio dos serviços disponibilizados por essas organizações, soque são pertinentes e adequadas, desde que estruturadas e implementadas com a devida maturidade e transparência.

E como toda proposta, esta também precisa e pode ser aperfeiçoada. Estabelecer  critérios mais claros e objetivos para identificação dos diversos serviços disponibilizados sujeitos a pagamento desta remuneração, para o cálculo e repartição dos valores recebidos pelos diversos titulares, e sobre a relação desta remuneração com os acordos existentes entre plataformas e titulares – especialmente no que se refere à repartição das receitas com autores, artistas, são exemplos de áreas que precisam de atenção.

Por um lado, temos o problema da não inclusão da remuneração pelo uso de todos os tipos de obras, pois todas são protegidas por direitos autorais. Este fato, por si só, cria uma distinção entre criadores em razão do tipo de obra que criam e aprofunda a ‘setorização’ da regulação, distorcendo ainda mais a sistematicidade da Legislação, já enviesada em favor da indústria musical. No entanto, ao mesmo tempo, nos parece certo que, em termos práticos, e uma vez que cada usuário é potencialmente criador do próprio conteúdo, será extremamente difícil, senão inviável, econômica e organizacionalmente, remunerar todo e qualquer conteúdo que trafega pelas redes digitais.

Por isso mesmo, entendemos ser importante que sejam discutidos e enfrentados na própria legislação, com o estabelecimento de critérios que, ao menos e sem prejuízo de outros, permitam ou impeçam a distinção, para fins desta remuneração de que tratamos, entre os vários tipos de obras audiovisuais, que são muito variados; entre conteúdos profissionais ou amadores; originais ou banais; produzidos e disponibilizados pelos próprios usuários (user-generated-content) ou não; em domínio público ou não; com recursos às Limitações e Exceções ou não; etc.

Direito de remuneração obrigatória aos autores e artistas

A repartição dos novos valores recebidos por estes usos – já não tão novos assim, é tópico especialmente sensível, pois está relacionado ao poder de imposição das condições contratuais por parte dos titulares derivados (produtores, editoras, etc.) aos criadores e artistas, invariavelmente em desvantagem para estes últimos.

Em sua justificativa, notadamente no Voto do Relator, o Substitutivo indica o propósito de “propiciar que as partes vulneráveis na relação comercial – autores, artistas, jornalistas e produtores – negociem em melhores condições o recebimento de uma remuneração justa das plataformas”.

No caso da música, o caput artigo 88-B informa que a remuneração a ser paga pelas plataformas deverá ser paga “independentemente da existência de instrumento de transferência de direitos a terceiros pela produção e utilização econômica da obra musical, fonograma, interpretação ou execução” e o seu parágrafo único absorve os demais dispositivos do 88-A também para a música.

Este comando é particularmente importante para garantir a efetiva remuneração dos criadores em si, em um ambiente negocial que comumente lhes é desfavorável. No entanto, não estende esta garantia às demais autores e artistas (como alertamos acima), nem mesmo aos do audiovisual, também incluídos na mesma proposta, pois o que é assegurado ao audiovisual é substancialmente aquém do que é assegurado aos da música, pois lhes falta (art. 88-A caput e § 1º) o ‘independentemente…’.

Além disso, poucos dispositivos estabelecem ferramentas capazes de endereçar tal vulnerabilidade para os autores e artistas do audiovisual, como é o caso do 3º do art. 88-A:

“Art. 88-A. Os titulares de direitos de autor sobre as obras audiovisuais e de direitos conexos sobre interpretações e execuções utilizadas por provedores terão direito à remuneração a ser paga pelo provedor pela disponibilização da obra na internet, ainda que tenha sido deflagrada por iniciativa de terceiros no âmbito dos serviços oferecidos pelo provedor, inclusive na hipótese da existência de instrumento de transferência de direitos a terceiros que não preveja expressamente referida remuneração.

[…]

3º Os contratantes são obrigados a guardar na formação, conclusão e execução do contrato, os princípios de probidade e boa-fé objetiva, prevendo clausula que estabeleça remuneração para o caso de a prestação tornar-se extremamente vantajosa para uma das partes em virtude de acontecimento extraordinário.

E na análise de seu conteúdo transparece a insuficiência do texto no que diz respeito à concreta realização econômica dos direitos dos autores, artistas e intérpretes. Não inova e reitera direitos e instrumentos já existentes, e que, infelizmente, se mostram insuficientes para promover o efetivo equilíbrio entre relações díspares.

O caput do art. 88-A proposto trata da relação entre provedores e titulares de direitos e, ainda que os autores e artistas sejam titulares originários de direitos, raramente são os efetivos controladores ou os maiores beneficiários das obras que criam ou participam. A cessão total é a prática e o volume das relações em que autores, artistas e intérpretes cedem seus direitos patrimoniais para produtoras não deve ser ignorado, sob efeito de tornar praticamente inócua para os autores a tão prolatada proteção. E não está claro, por exemplo, se as obrigações constantes daquele artigo e seus parágrafos alcançariam inclusive os contratos firmados entre autores, artistas, intérpretes e os demais titulares de direito.

É inegável que esse novo fato gerador sancionado pelo PL irá gerar receitas adicionais para os titulares. Mas o que sobrará para os autores, artistas e intérpretes? Terão os autores e artistas qualquer chance de serem beneficiados por essa remuneração em razão de um “acontecimento extraordinário”, ainda mais em um ambiente em que o risco é da essência da indústria do entretenimento? Poderão, eventualmente, renegociar ou forçar a renegociação judicial de seus contratos frente a essa entrada de novos valores, considerando o custo econômico e os riscos de exclusão e boicote pela indústria? Afinal, não já estariam os titulares empresariais em uma situação “extremamente vantajosa” perante os autores no que tange particularmente aos seus antigos contratos?

Qualquer solução efetiva e concreta para realizar o tão proclamado e pouco realizado incentivo aos criadores passa pela determinação legal inegociável de remuneração mínima obrigatória para os autores e artistas, pessoas físicas, que inegociável, independente e para além das condições contratuais, e que lhes assegurem a efetividade e eficácia deste direito, agora em vias de reconhecimento.

As possibilidades de revisão contratual trazidas no projeto já existem na lei geral, o Código Civil, cujas disposições se aplicam também às relações contratuais de direitos autorais. Então, em termos de avanços concretos em favor dos autores nas relações contratuais, exceto, e com alcance limitado, para os da indústria musical, não há de fato o que festejar.

Considerações Finais

As propostas expressas no Substitutivo ao PL 2370/19 trazem, em seu melhor, um avanço para o sistema e uma melhora significativa para a posição dos titulares de direitos autorais, tanto na oficialização de um direito de remuneração pelo uso de obras em plataformas, mesmo quando por terceiros usuários de serviços, como com relação à transparência e ao equilíbrio em suas relações com as plataformas.

Nossa análise aqui se concentrou no que, para nós, é um dos maiores problemas do Substitutivo: não assegurar, efetivamente, a todos os autores e artistas, pessoas físicas criadoras, direitos que lhes assegurem parcelas significativas desta remuneração, inegociável, independente dos termos e cláusulas contratuais e para além da remuneração contratualmente estabelecida.

Na sequência, trataremos de aspectos do PL que são igualmente centrais e urgentes a todo o ecossistema de direitos autorais, a saber: (i) a proposta de criação de uma nova titularidade original empresarial; (ii) a amplitude do conceito de “provedor” e os efeitos sobre as instituições de interesse social.