A tragédia no Rio Grande do Sul demonstrou a força com que crises socioambientais, com destaque para a emergência climática, têm impactado as populações, em especial e mais gravemente as já mais vulneráveis, como as crianças e adolescentes. Foram 1.059 escolas afetadas, em 248 municípios, e 84 servindo de abrigo, o que impactou 378.981 estudantes.
O estado gaúcho não é um caso isolado. Em janeiro de 2022, as chuvas em Petrópolis (RJ) causaram 44 mortes de crianças, entre o total de 232. Os desastres causados pela Samarco e pela Vale em Brumadinho e Mariana (MG) têm até hoje impactos severos na saúde mental de crianças e adolescentes.
As crianças, apesar de serem as maiores vítimas, que levarão essas marcas para toda a vida, não estão no centro do debate e das soluções. Continuam invisíveis nas estratégias de políticas para prevenção ou para remediar as crises humanitárias e ambientais, provocadas ou negligenciadas pelo ser humano.
Apesar da existência do artigo 227 da Constituição Federal, que garantiu prioridade absoluta aos direitos e interesses das crianças, e do artigo 225, que conferiu proteção constitucional ao direito ao meio ambiente saudável e equilibrado, existe ainda uma lacuna nas legislações infraconstitucionais e nas políticas públicas para juntar esses dois artigos e garantir que o direito da criança e do adolescente à natureza seja garantido com absoluta prioridade.
Essa é a constatação que faz nascer o PL 2225/2024, apresentado pela deputada federal Laura Carneiro (PSD-RJ), uma proposta inovadora que contou com a colaboração de cerca de 80 organizações da sociedade civil, e a escuta de 57 crianças e adolescentes de todas as regiões do país. Lívia, de 6 anos, do município de Pelotas (RS), por exemplo, fez uma demanda: “Queria que tivesse várias árvores frutíferas no caminho da minha casa”. Lívia mora em um conjunto habitacional desprovido de natureza e de equipamentos públicos que acolham as crianças.
O PL propõe um novo marco legal para implementar, por meio de diretrizes e previsões de políticas públicas, o direito de crianças e adolescentes à natureza em 5 grande dimensões:
I – o acesso à natureza;
II – a convivência e o estabelecimento de vínculos socioafetivos com a natureza;
III – o brincar livre com e na natureza;
IV – a educação baseada na natureza;
V – a defesa, conservação e regeneração da natureza.
Com cidades cuja malha urbana está orientada pela privatização dos espaços e pela primazia do automóvel, nas quais falta segurança, crianças e adolescentes têm experimentado uma crescente desconexão com a natureza, com prejuízos significativos para sua saúde física e mental, para sua experiência de aprendizagem como cidadãs, para a socialização e o contato com a biodiversidade. O Marco Legal “Criança e Natureza” avança no sentido de incentivar a criação de praças, parques e outras áreas verdes a uma distância caminhável de qualquer criança, bem como no estabelecimento de rotas seguras para o caminhar, o uso da bicicleta e o incentivo à visitação de áreas protegidas.
As culturas e modos de vida de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais, tão ameaçados, também estão incluídas na proposta e devem receber proteção prioritária, bem como crianças na primeira infância, com deficiência e em situação de vulnerabilidade socioeconômica, atravessadas pelo racismo ambiental. Converge neste Projeto de Lei, também, a resposta que deve ser dada a eventos climáticos extremos, assunto tão urgente e necessário.
Primeiro, o texto propõe a alocação de recursos financeiros e administrativos para a criação de protocolos, políticas, planos e ações para prevenção e redução de riscos de desastres, bem como a remediação das perdas e danos já causados pela emergência climática, levando em consideração a prioridade absoluta de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, o texto traz uma inovação: a centralidade das escolas como instituições para irradiar soluções de adaptação e mitigação climática baseadas na natureza, bem como de planos de ação de redução de riscos e respostas a desastres.
Propõe-se um modelo de educação baseada na natureza, com a convergência de ações de adaptação e mitigação climática dos espaços escolares, a restauração da biodiversidade, a redução da poluição e, ao mesmo tempo, projetos pedagógicos que fomentem o acesso e o cultivo de um vínculo com a natureza no ambiente escolar e em seu entorno, garantindo que crianças tenham a natureza como sala de aula e professora, conhecendo e amando aquilo que precisam cuidar.
Crianças e adolescentes têm sido colocadas nas discussões ambientais como “o futuro”. A verdade é que elas são o presente: trata-se do grupo menos responsável e o mais afetado atualmente pelas sucessivas crises socioambientais e climáticas. Contudo, crianças e adolescentes não são apenas vítimas, elas são sujeitos de direitos e agentes de transformação, que por isso precisam ser ouvidas, acolhidas, protegidas e respeitadas, inclusive como cidadãos, com acesso à justiça e proteção de toda a rede de garantias.
O mundo inteiro vem observando movimentos de crianças e adolescentes reivindicando maior proteção ao meio ambiente. Precisamos, como sociedade brasileira, responder e acompanhar a vanguarda e necessidade central desse movimento.
O Comentário Geral 26, instrumento da Convenção dos Direitos das Crianças da ONU – o tratado internacional mais ratificado do mundo –, estabeleceu recomendações claras de como os Estados podem implementar políticas para as crianças e o ambiente onde vivem.
O PL 2225/24 é o primeiro marco normativo do mundo a dar essa resposta traduzindo suas recomendações em instrumentos e políticas. Façamos valer o direito de crianças e adolescentes a terem acesso à natureza e a um meio ambiente saudável. Façamos valer o nosso papel constitucional e moral, como adultos responsáveis por todas elas. Não há direitos, nem humanos ou infâncias saudáveis, sem a solução prioritária das crises com o mundo natural. Lembremos sempre que somos natureza e sem ela não somos e nem seremos ninguém.