O direito da criança e do adolescente ao futuro, agora, no presente

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Pela primeira vez, o Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) declarou, explicitamente, que um meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano necessário para que crianças e adolescentes de hoje e das futuras gerações tenham seus direitos fundamentais garantidos. O Comentário Geral 26 do Comitê, divulgado em 2023, orienta governos, empresas, sistema de justiça e sociedade civil a respeitar, promover e considerar suas obrigações com os  direitos das crianças e do meio ambiente, bem como a tomar medidas para enfrentar as mudanças climáticas. É um documento que visa à implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança, o tratado mais aceito da história, ratificado por 196 países, inclusive o Brasil.

Em paralelo, tramita na arena legislativa e judicial brasileira uma série de discussões decisivas em relação à proteção do meio ambiente e das vidas que dele dependem. É o caso do PL 2903, sobre o chamado marco temporal, vetado parcialmente pelo presidente Lula, mas em tramitação no Congresso Nacional, que ainda pode derrubar os vetos para aprovar a proposta. O PL ameaça alterar o processo de demarcação de terras indígenas, impedindo a demarcação de novas áreas e fragilizando a proteção daquelas já demarcadas.

A ameaça alcança não apenas os povos indígenas, mas todas as crianças e adolescentes, em especial as indígenas, que são as mais afetadas pela crise climática global. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), assim como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), por meio de nota pública, se posicionou contrário à aprovação do PL nº 2903, considerando-o grave ameaça aos direitos da criança no Brasil.

É o que corrobora o Comentário Geral 26, que aponta o dever do Estado em dar atenção especial a crianças e adolescentes indígenas e à preservação de suas terras para cumprir o direito da criança ao meio ambiente equilibrado. O documento destaca que crianças indígenas são afetadas desproporcionalmente pelas mudanças climáticas, enfrentando riscos únicos, e também mostra seu papel como agentes de mudança  que podem atuar como educadores e defensores de direitos, inclusive  através de seu conhecimento tradicional e relação íntima com a natureza.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem reconhecido deveres de natureza constitucional em relação ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em diversas ocasiões, como no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6148 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 59, a Suprema Corte determinou medidas de proteção ambiental, construindo uma interpretação constitucional firme acerca das obrigações do Estado pela defesa do meio ambiente integrada aos direitos humanos.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760, em tramitação sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, é mais uma oportunidade para avançarmos na garantia do direito de crianças ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável. A ação tem por objeto a execução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), e o atingimento de resultados satisfatórios e condizentes com as metas climáticas assumidas pelo Brasil em acordos internacionais. A paralisação do plano desde 2018, operada pelo poder público federal, levou a um aumento drástico do desmatamento associado a queimadas na Amazônia, com graves consequências à saúde de crianças e adolescentes, levando a doenças respiratórias, nascimentos prematuros e mortalidade fetal, mesmo em regiões distantes da floresta.

Em 2023, com o novo governo federal, o PPCDAm foi retomado e os indicadores de desmatamento apresentaram sinais de melhora, porém, o cenário ainda é grave. Em outubro, o Amazonas apresentou o pior índice de queimadas dos últimos 25 anos, segundo dados do Sistema DETER do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A capital amazonense, que vive uma grave crise ambiental, acirrada pelas queimadas e pela seca histórica que atinge a região, é considerada o segundo pior lugar do mundo para se respirar.

A  realidade ainda é distante dos resultados ideais e das metas climáticas globais. É inestimável o impacto danoso da política ambiental federal dos quatro anos anteriores e o desafio de superá-lo se estenderá, infelizmente, às presentes e futuras gerações. O STF tem agora, portanto, o dever e oportunidade de julgar a ADPF 760 à luz da Constituição Federal para reconhecer as ações e omissões envolvidas no desmonte do PPCDAm, bem como as ainda necessárias medidas para a superação desse cenário.

Esse é o caminho do direito das crianças, conforme prevê o artigo 227 da Constituição, que determina que os direitos de crianças e adolescentes devem ser sempre considerados em primeiro lugar,  e chama a responsabilidade do Estado, famílias e sociedade para a sua proteção em todas as formas. Nesse caso, para que tenham seu direito à vida e ao meio ambiente equilibrado garantidos, como previsto no artigo 225 da Constituição.

Não à toa, o artigo 4º, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), determina que esse grupo deve ter preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, bem como destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, como seu direito à vida associado ao direito ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável.

O Comentário Geral 26 reafirma esse caminho: crianças devem ter acesso a ar e água limpos, clima seguro, ecossistemas equilibrados, com biodiversidade preservada, solo e alimentos não contaminados. Só assim elas terão assegurados outros direitos, como à vida, saúde e educação.

O documento aponta deveres aos Estados, ainda, em garantir infraestrutura escolar resiliente e protegida de fontes poluidoras, de inundações e deslizamentos de terra e de outras ameaças ambientais;  assegurar que todas as crianças, sem discriminação, possam brincar e participar de atividades recreativas em ambientes seguros, limpos e saudáveis, incluindo espaços naturais e parques; garantir a participação das crianças ao tomar decisões sobre questões relacionadas ao meio ambiente e às mudanças climáticas; e incluir as crianças no desenvolvimento de planos de adaptação e proteger as que já estão sofrendo os efeitos das mudanças climáticas, além de orientações a empresas e outras temáticas.

Os Comentários Gerais do Comitê dos Direitos da Criança têm papel fundamental na ampliação dos conceitos e aprofundamento do entendimento no que tange às disposições da Convenção sobre os Direitos da Criança. A própria jurisprudência nacional reconhece a sua importância como interpretação técnica e altamente qualificada de tratados internacionais. Em seu voto no Habeas Corpus coletivo 143.988, por exemplo, o ministro Ricardo Lewandowski utilizou como uma das bases para fundamentar sua decisão as orientações presentes no Comentário Geral nº 10,  de 2007, sobre os direitos das crianças na justiça juvenil.

Diante do cenário brasileiro e global climático grave, especialmente para a vida de crianças e adolescentes, o Comentário Geral 26 se torna ferramenta ainda mais indispensável de orientação a Estados e empresas, que deve ser considerada nas discussões atuais sobre clima, como no PL do marco temporal e na ADPF 760 do STF.

O Brasil, como um dos primeiros países que ratificou a Convenção dos Direitos da Criança, em 1990, e que tem em seu território uma biodiversidade e riqueza cultural imensas, tem o dever, conforme o mandamento constitucional, de priorizar o direito da criança e do adolescente ao meio ambiente equilibrado, adequando-se, por todos os meios possíveis, às novas diretrizes do Comitê. É sobre o direito ao futuro, agora, no presente.