O dilema do ICMS Difal e a sistemática da substituição tributária

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No final de novembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou as ações judiciais que discutiam a aplicação da Lei Complementar (LC) 190/22 ainda no ano de 2022, a qual trata da regulamentação do ICMS Difal nas operações com comércio eletrônico. 

A decisão da Corte foi de que à esta lei se aplica tão somente o princípio da anterioridade nonagesimal, ignorando o princípio da anterioridade de exercício. O voto condutor da decisão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ministro Alexandre de Moraes, despertou surpresa de tributaristas.

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Superado esse litígio acerca do famigerado art. 3º da LC 190/22, onde se aguarda o Acórdão da decisão do colegiado do STF, veiculam-se novas teses para reabrir a discussão, com o objetivo de, ainda, contestar o ICMS Difal em 2022. 

Em apertada síntese, as teses se referem à: (i) validade da cobrança do adicional de fundo de combate a pobreza antes da vigência da LC 190/23; (ii) limitação de uso dos créditos apenas para compensar débitos devido ao Estado de origem, exigindo todo o ICMS Difal sem compensações, conforme art. 20-A da LC 190/22; (iii) majoração de carga tributária do ICMS; e, por último, (iv) validade do Difal em função da publicação das leis ordinárias dos Estados.

Acerca da tese de majoração do ICMS em razão dos dispositivos da Lei Kandir, alterados pela LC 190/2022, verifica-se que se instituiu a “base dupla” do ICMS Difal na referida lei. Os novos parágrafos 6º e 7º do artigo 13 da Lei Kandir (LC 87/1996), incluídos pela LC 190/2022, estabelecem, ao fim, bases de cálculos do ICMS Difal distintas. O cenário antes da EC 87/2015 era a prática de base de cálculo única, independentemente se o destinatário era, ou não, contribuinte do imposto.

Em relação à tese que cuida da validade do ICMS Difal em função da necessidade de publicação das leis ordinárias dos Estados no ano de 2022, é possível que o Tema 1.094 do STF seja luz no deslinde desse ponto.

Se aplicarmos os termos da tese aprovada no Tema 1.094 pelo STF, é possível dizer que as leis estaduais que já haviam legislado sobre o ICMS Difal ainda em 2021 já seriam válidas, não sendo necessário serem republicadas, desde que não haja divergência em relação à normal geral do ICMS, a Lei Kandir, com suas alterações.

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A tese do Tema 1.094 admite pensarmos que as leis estaduais que tratem da partilha do ICMS Difal produziriam efeitos somente a partir da vigência da LC 190/22. Neste sentido, considerando que a produção de efeitos de tais leis estaduais seja a partir da vigência da LC 190/22, isto é, a partir do dia 5 de janeiro de 2022, tais leis produziriam efeitos em 2022 se restasse comprovado que não houve majoração de imposto. 

Não obstante as teses que são discutidas, a serem aproveitadas em prováveis embargos de declaração ao Acórdão do STF nas ADI’s 7066, 7070 e 7078, há relevante aspecto a ser discutido que envolve a tese da limitação dos créditos de ICMS, por força do Art. 20-A incluído pela LC 190/22. Referido dispositivo determina, em última análise, que o contribuinte só poderia descontar tais créditos daquele débito de ICMS calculado utilizando uma alíquota interestadual, embora tenha incluído no valor total da operação/prestação um ICMS a maior devido ao uso de uma alíquota interna do Estado de destino (conforme §7º do art. 13 da Lei Kandir).

Neste sentido, importante destacar que os dispositivos introduzidos à Lei Kandir pela LC 190/22 também cuidaram de definir quem deveria recolher o ICMS Difal na operação com consumidor final não contribuinte do imposto. O remetente da operação/prestação foi classificado como sendo o “contribuinte” do ICMS Difal. 

Ocorre que o texto da EC 87/15 permite entendimento diverso. E essa diferença é determinante para considerar, ou não, a inconstitucionalidade do art. 20-A da LC 190/22, além de sugerir prática de apuração e recolhimento do ICMS Difal diferente do praticado atualmente.

Quando comparamos os fundamentos da EC 87/15 com os da LC 190/22, bem como com as regras editadas pelos Estados para a emissão da Nota Fiscal, veremos que o Difal que operamos hoje não guarda relação com aquele previsto nos incisos VII e VIII do §2º do art. 155 da CF/88.

Ocorre que, enquanto a EC 87/15 determina que o remetente da mercadoria é, em uma operação interestadual com consumidor final não contribuinte do imposto, um sujeito passivo “responsável” pelo recolhimento da diferença de alíquotas, a LC 190/22, por sua vez, determina que esse remetente da operação é, na verdade, o próprio “contribuinte” do Difal, conforme inciso II, do §2º do art. 4º da LC 190.

Há relevante diferença, para o ICMS, entre ser o apenas “responsável” e ser o “contribuinte” do imposto.

A divergência quanto a conceituação do remetente da mercadoria é determinante. Enquanto a EC 87/15 reputou ao remetente apenas a “responsabilidade pelo recolhimento do imposto”, atraindo o disposto nas alíneas “b” e “d”, do inciso XII, do §2º do art. 155 da própria CF/88, a LC 190/22 determinou, em sentido contrário, que o próprio remetente é também o contribuinte do ICMS Difal devido ao Estado de destino do adquirente.

A LC 190/22 deixou de considerar, a nosso ver, não só o disposto na redação da EC 87/2015 como também o disposto no art. 121, parágrafo único, inciso II e no art. 128, ambos da Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional). Além disso, deixou de observar, no mesmo sentido, o próprio disposto na LC 87/1996 no seu art. 6º. Tais dispositivos tratam da empresa enquanto responsável na sistemática da substituição tributária do ICMS.

Considerando todos esses elementos de forma conjunta, vemos que a operacionalidade do ICMS Difal se acomoda nos dispositivos legais relacionados a substituição tributária, cujo valor do imposto deveria ser destacado em campo próprio do documento fiscal e somado ao valor da mercadoria para fins de cobrança do adquirente consumidor final. 

Notemos que, quando o consumidor final é um contribuinte do ICMS, as disposições da LC 190/22 já encaminham nesse sentido. Nos termos do Art. 4º, §2º, I, c/c art. 12, XV; c/c Art. 13, IX, b, §1º, I, §3º e §6º, b, o adquirente consumidor final e contribuinte do imposto é que terá o dispêndio de apurar o ICMS decorrente da diferença de alíquotas e, como contribuinte que é, recolherá o valor do ICMS Difal ao seu Estado. O custo total da operação de aquisição é determinado a partir do somatório do ICMS Difal calculado no destino com o valor da mercadoria constante no documento fiscal.

Nesse sentido, considerando que, de fato, o ICMS Difal seria um valor calculado e recolhido na sistemática de substituição tributária, o art. 20-A da LC 190/22 não seria inconstitucional, desde que, repita-se, o entendimento acerca do encargo do ICMS Difal seja compreendido como sendo do destinatário, independentemente se é ou não contribuinte do imposto. Inconstitucional seria, portanto, o §2º do art. 4º da LC 190/22.

Conclui-se que a celeuma acerca do início da cobrança do ICMS Difal, por meio da LC 190/22, não alcançou aspectos importantes que poderiam dar rumo distinto à toda a discussão. A redação da LC 190/22 traz consigo regulamentação e interpretação distinta daquela dada pela EC 87/15, bem como a operacionalização do ICMS Difal diferente daquela dada pelo Confaz. Tudo isso possibilitou que o ICMS Difal tivesse destaque negativo no ambiente nacional de negócios. Não obstante o ICMS ser complexo, é possível que tal complexidade seja resultado do descaso na elaboração das normas atinentes a sua operacionalidade.