O dilema do controle político sobre as agências reguladoras

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A recente aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da PEC nº 42/2024, que atribui à Câmara dos Deputados competência para fiscalizar atos normativos das agências reguladoras, reacende um debate que atravessa décadas: qual é a natureza do poder exercido por essas entidades e como deve ser controlado?

A questão não é nova, mas ganhou contornos mais nítidos à medida que as agências consolidaram sua atuação. Desde a onda de criação desses órgãos nos anos 1990, o discurso predominante foi o da especialização técnica como antídoto contra ingerências político-partidárias. A promessa era simples. Decisões complexas sobre tarifas, padrões de qualidade e normas setoriais estariam a salvo das oscilações eleitorais, ancoradas em critérios objetivos e expertise especializada.

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Três décadas depois, essa narrativa precisa ser revisitada. Não porque as agências tenham falhado em sua missão institucional. Pelo contrário, trouxeram ganhos inegáveis de profissionalização e estabilidade regulatória. Mas porque a experiência prática revelou algo que o modelo original subestimou: a inevitabilidade de que, em determinadas circunstâncias, as agências exerçam poder político.

A zona cinzenta da regulação

A distinção clássica entre discricionariedade técnica e poder político é relativamente clara na teoria. A primeira envolve a escolha entre meios alternativos para atingir um fim previamente definido em lei. O segundo diz respeito à própria definição ou priorização desses fins quando o legislador não estabeleceu hierarquia clara entre eles.

Na prática, porém, essa fronteira é mais porosa do que se imagina. Tome-se o exemplo das análises de impacto regulatório, hoje exigidas por lei para atos normativos de caráter geral. Esses estudos costumam avaliar alternativas regulatórias com base em múltiplos critérios, como eficiência econômica, benefícios sociais, impactos ambientais e viabilidade de implementação.

O problema surge quando a própria metodologia da análise já embute escolhas sobre o peso relativo de cada critério. Quando uma agência decide, por exemplo, que “alcance regulatório” terá o mesmo peso que “benefício para a saúde pública” na pontuação das alternativas, está fazendo uma escolha sobre prioridades que não necessariamente decorre de imposição legal clara.

Essas escolhas metodológicas não são meramente técnicas. São, em essência, juízos sobre qual equilíbrio entre diferentes objetivos públicos deve prevalecer. Todos esses objetivos são legítimos, mas a definição de qual tem primazia se aproxima perigosamente da essência do poder político: a capacidade de determinar os fins de interesse público e estabelecer os meios para sua concretização.

O retorno do controle legislativo

É nesse contexto que a PEC nº 42/2024 deve ser compreendida. A proposta não surge de uma hostilidade às agências reguladoras, mas de uma percepção de que o Congresso Nacional transferiu poder normativo sem estabelecer contrapartidas adequadas de controle. Essa percepção pode ou não corresponder à realidade, mas é institucionalmente significativa.

O argumento central dos autores é direto. Se a produção normativa é função típica do Legislativo, e se as agências exercem de fato poder normativo em nome do Estado, então os representantes eleitos devem ter meios efetivos de fiscalizar esse exercício. Atualmente, apenas o Senado Federal participa ativamente do processo, pela aprovação dos nomes de diretores. A Câmara ficaria, segundo essa visão, alijada de uma função que lhe cabe por essência.

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O relator da PEC foi ainda mais longe ao contextualizar historicamente a questão. A transição para o paradigma do Estado Regulador, operada pela Emenda Constitucional nº 8/1995, representou uma delegação de poder do Legislativo para entidades especializadas. Mas delegação não é abdicação. O poder originário de inovar no ordenamento jurídico permanece com o Congresso, que deve estruturar meios de controle e responsabilização sobre suas criações institucionais.

Os riscos de cada extremo

A questão central não é se deve haver controle político sobre as agências. Deve haver. A pergunta relevante é outra: que tipo de controle, com que intensidade e por meio de quais instrumentos?

Um controle excessivamente detalhado ou que adentre o mérito técnico de cada decisão pode comprometer exatamente aquilo que justificou a criação das agências. A estabilidade, a previsibilidade e a proteção contra captura por interesses de curto prazo ficam ameaçadas. Se cada norma regulatória puder ser revista casuisticamente pelo Legislativo, a segurança jurídica necessária para investimentos de longo prazo fica comprometida. Isso é especialmente crítico em setores de infraestrutura.

Por outro lado, a ausência de controle efetivo gera déficit democrático. Agências que definem prioridades entre objetivos públicos sem qualquer accountability perante representantes eleitos correm o risco de se transformarem naquilo que a literatura especializada chama de “tecnocracia desacoplada”. São entidades que operam segundo sua própria lógica interna, progressivamente distantes dos fins setoriais que a lei lhes atribuiu.

O controle pelos fins, não pelos meios

A solução para esse dilema passa por distinguir com clareza dois níveis de controle. O primeiro, de natureza técnica, deve ser exercido primordialmente pelo Poder Judiciário e pelos órgãos de controle interno, avaliando a legalidade, a proporcionalidade e a adequação dos meios escolhidos pela agência para atingir os fins setoriais.

O segundo, de natureza política, deve mirar a aderência das escolhas regulatórias aos objetivos e prioridades estabelecidos em lei. É aqui que o controle legislativo encontra sua razão de ser. Quando uma agência prioriza, por exemplo, a universalização de serviços sobre a modicidade tarifária, ou privilegia padrões ambientais mais restritivos em detrimento da viabilidade econômica de pequenos prestadores, está fazendo escolhas políticas. Essas escolhas podem ser tecnicamente fundamentadas, mas sua natureza permanece política.

Essas escolhas devem ser transparentes quanto aos critérios adotados e passíveis de questionamento pelos representantes eleitos. Não para que o Congresso substitua o juízo técnico da agência, mas para verificar se a priorização escolhida está alinhada com os objetivos que o próprio legislador definiu ao criar ou reformar o marco legal setorial.

Transparência como condição

Para que esse modelo de controle funcione sem descambar para microgestão, as agências precisam tornar explícitas suas escolhas metodológicas quando realizam análises de impacto regulatório ou estudos técnicos que fundamentam atos normativos. Não basta apresentar uma pontuação final entre alternativas. É preciso deixar claro por que determinados critérios foram escolhidos, que peso receberam e como se relacionam com os fins legais do setor.

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Essa transparência metodológica cumpre duas funções. Primeiro, permite que o debate público se dê no nível correto, sobre prioridades e objetivos, não sobre aspectos puramente técnicos que exigem expertise especializada. O controle legislativo pode então se concentrar no que lhe compete. Segundo, reduz o risco de que escolhas políticas se escondam atrás de uma pretensa objetividade técnica.

Conclusão

A PEC nº 42/2024 é, acima de tudo, um sintoma. Ela revela a tensão não resolvida entre dois valores caros ao Estado Democrático de Direito. De um lado, a necessidade de decisões técnicas qualificadas e estáveis. De outro, a exigência de accountability democrática.

O desafio não está em escolher um desses valores em detrimento do outro, mas em construir arranjos institucionais que os harmonizem. As agências reguladoras vieram para ficar e trouxeram contribuições importantes para a qualidade da regulação setorial. Mas sua legitimidade depende de reconhecer as dimensões políticas de suas decisões e submetê-las a controles apropriados.

O caminho não é enfraquecer a capacidade técnica das agências nem substituir seu juízo especializado por deliberações políticas casuísticas. É estabelecer mecanismos de controle que incidam sobre aquilo que legitimamente compete aos representantes eleitos. Eles devem verificar se as prioridades adotadas pelas agências estão alinhadas com os fins que a lei, expressão da vontade popular, lhes atribuiu.

Nesse equilíbrio delicado reside a possibilidade de preservar o melhor dos dois mundos: regulação tecnicamente qualificada e democraticamente responsável.