O devido processo legal como instrumento de concretização do direito à privacidade

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Seguimos, caro leitor, com nossas breves reflexões sobre o “due process of law” como instrumento de concretização do direito à privacidade, para o nosso regalo e a sua diversão/instrução (esperamos…). Aqui estão as bases para a doutrina universal da “privacy” e – dizíamos mês passado – para a nossa própria Lei Geral de Proteção de Dados (editada que foi sob a égide do inciso X do art. 5º da Constituição, antes mesmo da EC n. 115/2022…); como também as bases, na tradição estadunidense, para a própria tutela constitucional dos direitos sociais. Essa é a histórica que contaremos agora.

E, para isso, retomemos de onde paramos no mês passado. Falemos, pois, da terceira fase do devido processo legal na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

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A terceira fase da hermenêutica constitucional do “due process of law” estadunidense, que ora denominaremos fase do “noneconomic substantive due process”, ganha formas a partir de 1937 e chega a nossos dias.

Antecipávamos na coluna anterior que já em 1917 a terceira fase era precocemente sinalizada no caso Buchanan v. Warley, em que a U.S. Supreme Court derrubou, em elaborado voto do justice DAY, ordenança administrativa do município de Louisville que, sob o pálio do chamado “police power”, proibia a venda, a pessoas negras, de casas situadas em blocos residenciais habitados por maioria branca. Detectou-se uma arbitrária intromissão do Estado no direito de propriedade dos brancos — que afinal poderiam querer vender imóveis a negros —, com consequente violação ao princípio do devido processo legal vazado na Emenda XIV (ainda na perspectiva da “economic doctrine”). Pelas piores razões, reconhecia-se, afinal, um bom direito (na verdade, um imprescindível direito).

Mas não foi só.

Também vimos que, na fundamentação, DAY recusou a tese de que a restrição consubstanciaria exercício razoável do poder de polícia regulatório (a bem da pacificação social, da manutenção dos preços dos imóveis e até da “redução da miscigenação”); e a recusou não por razões econômicas, mas sobretudo por razões humanitárias (ligadas aos princípios da isonomia e da não discriminação): nenhuma iniciativa pública, ainda se válida e bem-intencionada, poderia chancelar a segregação e a própria discriminação racial. In verbis:

“A city ordinance for bidding colored persons from occupying houses as residences, or places of abode or public assembly, on blocks where the majority of the houses are occupied by white persons for those purposes, and in like manner forbidding white persons when the conditions as to occupancy are reversed, and which bases the interdiction upon color, and nothing more, passes the legitimate bounds of police power, and invades the civil right to acquire, enjoy and use property, which is guaranteed in equal measure to all citizens, white or colored, by the Fourteenth Amendment.

“Such a prohibition cannot be sustained upon the grounds that, through race segregation, it serves to diminish miscegenation and promotes the public peace by averting race hostility and conflict, or that it prevents deterioration in value of property owned and occupied by white people; nor does the fact that, upon its face, it applies impartially to both races relieve it from the vice of discrimination or obviate the objection that it deprives of property without due process of law. Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537, and Berea College Case, 211 U.S. 45, distinguished” (g.n.).

 Em paralelo a essa espontânea inflexão de tendência, cabe também notar que o “ativismo judicial” deflagrado na Suprema Corte com a doutrina do “economic substantive due process” passou a representar, na década de trinta, um grande empecilho ao projeto econômico e às políticas públicas eleitas pelo Governo Federal. Com efeito, muitos julgados se opunham visceralmente às políticas intervencionistas do New Deal de FRANKLIN D. ROOSEVELT, na intenção de preservar a propriedade, a liberdade contratual, o livre comércio ou mesmo o federalismo. Vejam-se, por exemplo, Panama Refining Company v. Ryan (1935), Schechter v. United States (1935), Louisville Bank v. Radford (1935), Carter v. Carter Coal Company (1936), e assim sucessivamente.

Por conta disso, colimando sepultar o ativismo judicial de corte liberal que arrevesava as políticas econômicas e sociais do governo, ROOSEVELT tentou aprovar no Congresso Nacional, em 1937, o Court-packing plan, alterando a dinâmica de composição da U.S. Supreme Court com o alegado propósito de “renovar” mais frequentemente os seus quadros, adequando-a às complexidades da vida moderna. O Presidente dos Estados Unidos foi então autorizado a indicar um membro a mais do número de justices existente na Suprema Corte sempre que um juiz que houvesse servido por pelo menos dez anos deixasse de se aposentar nos seis meses ulteriores ao seu aniversário de setenta anos. No ano de 1937, isso significaria possibilitar a ROOSEVELT nomear até seis juízes novos, todos provavelmente alinhados com a “nova visão”.

No entanto, uma vez que nem mesmo seu partido (o Democratic party) o apoiou, e diante da forte reação negativa experimentada junto à imprensa e à opinião pública, ROOSEVELT terminou amargando a rejeição de seu Court-packing plan no Congresso Nacional. Nada obstante, a referida tentativa marcou, ao menos para efeitos didáticos, o fim da chamada “era Lochner” na hermenêutica da “due process clause”. É que a partir de então, sentindo-se aparentemente intimidada,[1] a U.S. Supreme Court retraiu-se, passando a adotar linhas de entendimento menos arrojadas e mais dóceis para com o intervencionismo estatal (outorgando aos respectivos atos normativos uma inédita presunção de constitucionalidade). Ao menos tempo, precipitou-se a viragem semântica já insinuada em 1917, que realmente convergia para a ideia de um Estado-interventor que garantisse a realização dos chamados direitos de prestação (habitação, educação, previdência social, direitos sociais em sentido estrito, etc.).

Assim é que, no caso West Coast Hotel Co. v. Parrish (300 U.S. 379) — julgado naquele mesmo ano de 1937 —,  a U.S. Supreme Court infletiu bruscamente a tendência de sua série histórica de decisões. Ao examinar lei do Estado de Washington que fixava um salário mínimo para as mulheres (como outrora se viu em Adkins v. Children’s Hospital, sob a censura final da Suprema Corte), refutou a tese de inconstitucionalidade fundada na violação do devido processo substantivo (Emenda XIV), argumentando tratar-se de legítimo exercício do “policy power” estatal para a garantia de direitos sociais mínimos. Na dicção do justice HUGHES,

1. Deprivation of liberty to contract is forbidden by the Constitution if without due process of law, but restraint or regulation of this liberty, if reasonable in relation to its subject and if adopted for the protection of the community against evils menacing the health, safety, morals and welfare of the people, is due process. P. 300 U. S. 391.

2. In dealing with the relation of employer and employed, the legislature has necessarily a wide field of discretion in order that there may be suitable protection of health and safety, and that peace and good order may be promoted through regulations designed to insure wholesome conditions of work and freedom from oppression. P. 300 U. S. 393.

3. The State has a special interest in protecting women against employment contracts which through poor working conditions, long hours or scant wages may leave them inadequately supported and undermine their health; because:

 (1) The health of women is peculiarly related to the vigor of the race;

(2) Women are especially liable to be overreached and exploited by unscrupulous employers; and

 (3) This exploitation and denial of a living wage is not only detrimental to the health and wellbeing of the women affected, but casts a direct burden for their support upon the community. Pp. 300 U. S. 394, 300 U. S. 398, et seq.” (g.n.).

Na minha opinião, essa passagem ilustra bem o fenômeno que os constitucionalistas contemporâneos denominam de “mutação constitucional”[2] (em relação ao texto da Emenda n. XIV). Sem mudança do texto constitucional, superava-se a perspectiva “econômica” da tutela proporcionada pela “due process clause”, para debelar, por um lado, o ativismo judicial de fundo ultraliberal que obstaculizava as políticas do New Deal; e, por outro, para estendê-la (a tutela) a todo e qualquer direito fundamental consagrado na Constituição norte-americana (com especial cautela para os “noneconomic rights”, até então negligenciados, no marco do devido processo, pela jurisprudência da U.S. Supreme Court), amiúde na perspectiva da equal protection, como já se anunciava em Buchanan v. Warley.  

 Há vários outros julgados representativos da viragem semântica assim operada, privilegiando o controle de constitucionalidade pela perspectiva maior dos “civil rights” (= direitos e liberdades fundamentais) e já não apenas pelo estrito cadinho dos “economic rights” (adstritos às questões de propriedade, comércio e liberdade contratual). Trabalhemos com dois deles.

Em Griswold v. Connecticut (381 U.S. 479, 1965), analisando lei do Estado de Connecticut que criminalizava o uso de contraceptivos, a Suprema Corte decidiu invalidá-la por violação à Décima Quarta Emenda (“substantive due process”), no que resguardava o direito à privacidade (“right of privacy”) — e, nesse sentido, a própria privacidade marital. O justice WILLIAM O. DOUGLAS pontificou, a propósito, que a “privacy” podia ser seguramente identificada em “penumbras” e “emanações” de algumas outras salvaguardas constitucionais, conquanto não emergisse explícita do Bill of Rights estadunidense (o que remete ao conceito mais contemporâneo de direitos fundamentais constitucionalmente adscritos: v., supra, nota n. 150; infra, §33º). Ao judice JOHN MARSHALL HARLAN II coube, por seu turno, apresentar voto convergente no qual afirmava que o direito à privacidade estaria constitucionalmente protegido sob o manto direto da “due process clause” da Emenda XIV. HUGO BLACK e POTTER STEWART divergiram. Pelo quanto decidido, e à vista do alcance das discussões travadas, críticos acusaram a Suprema Corte de protagonizar, no caso Griswold, uma teratológico teatro de “judicial activism” — o que demonstrava, afinal, que o ativismo judicial não estava morto com a superação da “era Lochner”. Apenas reencontrava sua vereda, já não com o norte do liberalismo econômico, mas com o norte das liberdades civis. 

Já no cinematográfico Roe v. Wade[3] (410 U.S. 113, 1973), a Suprema Corte invalidou a lei texana antiaborto por entendê-la excessivamente restritiva, já que declarava lícitos apenas os abortos praticados para resguardar a vida da mãe, criminalizando todas as demais hipóteses (gravidez decorrente de estupro, feto anencefálico, etc.). Semelhante rigor violava importante aspecto da liberdade da mulher: o seu direito à privacidade, a albergar — na linha de Griswold v. Connecticut (expressamente invocado) — o próprio direito de decidir pelo abortamento. O governo estadual somente poderia ser intrusivo a esse ponto se os interesses em jogo tornassem a restrição justa, razoável e apropriada (“fair, reasonable and appropriated”; a mesma fórmula do caso Lochner, abstraído o seu contexto econômico); mas não era essa a hipótese. Daí se concluir, no voto do justice BLACKMUN, que

3. State criminal abortion laws, like those involved here, that except from criminality only a life-saving procedure on the mother’s behalf without regard to the stage of her pregnancy and other interests involved violate the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment, which protects against state action the right to privacy, including a woman’s qualified right to terminate her pregnancy. Though the State cannot override that right, it has legitimate interests in protecting both the pregnant woman’s health and the potentiality of human life, each of which interests grows and reaches a “compelling” point at various stages of the woman’s approach to term. Pp. 410 U. S. 147-164. […]

“XI

“To summarize and to repeat:

1. A state criminal abortion statute of the current Texas type, that excepts from criminality only a lifesaving procedure on behalf of the mother, without regard to pregnancy stage and without recognition of the other interests involved, is violative of the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment. […]” (g.n.).

Como se sabe, ademais, o procedente firmado em Roe v. Wade foi novamente revertido durante o Governo Biden (em 24 de junho de 2022, por seis votos a três).

Esses dois casos bem revelam o quanto se distendeu o foco hermenêutico da “due process clause” na terceira fase, possibilitando o controle de constitucionalidade de leis penais na perspectiva de direitos fundamentais tão contextualmente invulgares como o direito à privacidade e, em certo sentido, o próprio direito à vida (em Roe v. Wade). Tangências que jamais se imaginariam na fase do “economic substantive due process”.

Por esses caminhos, afinal, construiu-se e consolidou-se o atual modelo hermenêutico dominante na jurisprudência da U.S. Supreme Court. Para efeitos de “judicial review”, a “due process clause” preserva, ao lado de sua função de garantia no plano estritamente processual (paradigma “no making a man in his own case” e todos os seus corolários), uma clara função de tutela substantiva (= “substantive due process”) diretamente atrelada aos direitos fundamentais consagrados na Constituição dos Estados Unidos da América. Essa função de tutela substantiva já não alberga, todavia, a mesma largueza de possibilidades e a mesma pulsão liberal da segunda fase de sua hermenêutica constitucional (“economic substantive due process”). Tem, ao revés, limites bem claros:

(a) o “judicial review” tem papel residual, se não mesmo excepcional, servindo exclusivamente à tutela judicial de valores constitucionais fundamentais que se vejam significativamente agredidos por atos normativos dimanados pelos outros poderes públicos (i.e., “minimal judicial review” sob um “rationality standard”);

(b) a legislação regulatória para políticas sociais e econômicas (“economic and social welfare legislation”) goza de presunção de constitucionalidade, se não interfere com direitos fundamentais da pessoa humana;

(c) os outros poderes públicos têm ampla liberdade para lidar com questões de bem-estar econômico e social que não afetem direitos fundamentais e nem envolvam classes de pessoas às quais a Constituição reserve especial proteção judicial;

(d) o Poder Judiciário não está acima dos outros poderes públicos e nem deve atuar como um “superlegislativo” (“the judiciary may not sit as a superlegislative to judge the wisdom or desirability of legislative policy determinations”) – o que, registre-se, começa a entrar com força na ordem do dia do debate político-institucional brasileiro. Mas, aí sim, é outra história, a debatermos em futura coluna.

Com tudo isso, a U.S. Supreme Court deixou definitivamente de circunscrever suas preocupações com o “substantive due process” ao campo econômico, redirecionando-as  ao controle de leis e atos normativos limitativos de direitos fundamentais em geral. Buscou fazê-lo, ademais, com a devida calibragem da razoabilidade em relação a fins.

A doutrina do “noneconomic substantive due process” proporcionou, portanto, uma valiosa técnica de decisão tendente à concretização daqueles direitos fundamentais; e já não apenas os de primeira geração (em especial as liberdades, que vinham de ser  bem guardadas desde a fase do “economic due process”), mas também os ditos direitos humanos de segunda e de terceira dimensão, na medida em que se favoreceu o reconhecimento de legitimidade constitucional de atos normativos (sejam eles legislativos ou administrativos) que, se restringem direitos e liberdades fundamentais como a propriedade ou a liberdade contratual, fazem-no de modo proporcional e razoável em relação aos objetivos que colimam (notadamente a saúde, a segurança e/ou o bem-estar das pessoas). Tudo isso sem deixar de albergar a própria tutela judicial da privacidade, que vinha das fases anteriores.

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[1] V., e.g., O’BRIEN, David M. What process is due? Courts and science-policy disputes, New York, Russel Sage Foundation, 1987, p.111.

[2] Cf., por todos, MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.130. In verbis: […] as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação […]. Vistas a essa luz, portanto, as modificações constitucionais são decorrentes — nisso residiria a sua especificidade — da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição — pluralista por antonomásia — intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte”. Disso tudo não poderia haver exemplo mais exato que Roe v. Wade (aborto).

[3] Cf. “Roe vs. Wade” (1989), do diretor Gregory Hoblit, com Holly Hunter e Jeff Allin (Paramount).