O debate das praias além da PEC

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As praias são o palco democrático onde se encontram pescadores, vendedores, turistas e personagens diversos. É um espaço que molda o ritmo das cidades que a cercam, com impacto socioeconômico e ambiental dentro de sua dinâmica. A discussão quanto ao seu livre acesso e de seu pertencimento à cultura e à vida da sociedade brasileira é, sem dúvidas, relevante no contexto nacional – em especial considerando os quase 8.000 km de linha de costa do Brasil.

As notícias e redes sociais foram invadidas, nas últimas semanas, pelo debate da possível “privatização das praias”, atrelada à PEC 3/2022. É importante esclarecer: a PEC não trata de privatização direta, mas da retirada da propriedade exclusiva da União dos chamados terrenos de marinha. Esses terrenos não compreendem a praia em si, mas as áreas de acesso à praia. Com a PEC, a União fica autorizada a realizar a transferência gratuita ou a venda dos terrenos já ocupados.

O debate trouxe à tona questões sobre a possível restrição do acesso e a gestão desses espaços. Há receio que o afastamento da União possa comprometer os objetivos de conservação ao priorizar atividades como empreendimentos imobiliários, resorts e marinas, que provocam, muitas vezes, a gentrificação das áreas. No entanto, deixando de lado as projeções para o futuro e olhando para o presente: quais são as camadas de proteção existentes para as praias e áreas costeiras?

Uma das respostas possíveis passa pelas unidades de conservação (UCs). As UCs são áreas protegidas por lei com o objetivo de conservar a biodiversidade, os recursos naturais e os serviços ecossistêmicos. Elas são classificadas em duas categorias principais: de proteção integral e de uso sustentável. No âmbito marinho e costeiro, incluem-se parques nacionais marinhos, reservas extrativistas marinhas, áreas de proteção ambiental (APAs), entre outros. Estas áreas são essenciais para a preservação de habitats de espécies ameaçadas, proteção de manguezais, recifes de corais e a manutenção dos processos ecológicos.

As UCs costeiras e marinhas cobrem uma área significativa, mas ainda insuficiente para garantir a proteção total desses ambientes. Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), a área marinha e costeira brasileira tem apenas 27,8% de sua área protegida, abrangendo um total de 739 unidades de conservação. Esses dados são de 2021, sendo os últimos dados atualizados disponíveis.

As UCs enfrentam diversos desafios. A urbanização descontrolada, a poluição, a sobrepesca e o turismo desordenado são alguns dos problemas que ameaçam a integridade desses ecossistemas. A falta de fiscalização é outro problema crítico. Muitas UCs são estabelecidas no papel, mas na prática sofrem com invasões, pesca ilegal e outras, que comprometem suas áreas de proteção. Dados indicam que, desde 1985 até 2020, o país reduziu em 15% a superfície de praia, duna e areal o que corresponde, aproximadamente, a 70 mil hectares. Isso é consequência do pacote de problemas em torno da proteção.

Tome-se o exemplo de Jericoacoara. A região, no Ceará, é uma UC da modalidade “Parque Nacional”, definido por decreto em fevereiro de 2002. Antes, a região era uma área de proteção ambiental, existente desde 1984. Com o aumento do turismo na região nos últimos anos, desde 2018 são noticiados danos visíveis ao ecossistema, como a redução das dunas e a execução ilegal de empreendimentos imobiliários e hoteleiros – que, inclusive, estão sob investigação do Ministério Público do Estado.

Uma das maneiras de tentar equacionar os problemas é a realização de concessões à iniciativa privada, ao menos para locais atrativos como é o caso de Jericoacoara – que, inclusive, é o terceiro parque mais visitado do Brasil. O modelo transfere à concessionária a gestão dos serviços de visitação, manutenção e operação, com custeio de ações de monitoramento e fiscalização[1]. A concessão é a salvadora dos problemas? Provavelmente não. Mas não deixa de ser um instrumento que aumenta o arsenal da gestão pública em encontrar saídas para encontrar recursos e incrementar a proteção.

Com ou sem PEC, a área costeira do Brasil parece protegida de maneira insuficiente. Mais que isso, os dados disponíveis quanto à proteção ambiental não são frequentemente atualizados, muito por conta dos problemas de orçamento das entidades. Somente com políticas integradas, financiamento adequado e engajamento comunitário será possível garantir que as praias brasileiras continuem a ser um patrimônio acessível e protegido para as futuras gerações. Falar do acesso democrático é essencial. Mas tão importante quanto, é entender a urgência de pensarmos na proteção da nossa área costeira.

[1] O projeto da concessão é do Ministério do Turismo (MTur), com apoio da Unesco, e estruturado pelo BNDES, com acompanhamento do ICMBio, Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Programa de Parcerias de Investimentos do Governo Federal (PPI).