De uma maneira muito simples, o curtailment (tecnicamente chamado de constrained-off) é definido como o corte da geração de energia de usinas centralizadas por determinação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), tendo por fito garantir em tese o equilíbrio entre oferta e demanda de energia, de modo a se assegurar o respeito aos limites operacional e restrições técnicas do Sistema Interligado Nacional (SIN)[1].
O curtailment é atualmente um dos assuntos mais herméticos e críticos do setor elétrico brasileiro. Sua crescente relevância nos últimos anos, com efeitos econômicos significativos para os geradores e, potencialmente, para os financiadores de parques de geração renovável, se deu pela intensa entrada em operação de projetos de Micro e de Mini Geração Distribuída (MMGD).
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Esses projetos operam de forma descentralizada e sem controle do ONS, bem como pela disparidade entre a localização da geração de energia eólica e solar no país (78% do total nacional é gerado no subsistema nordeste) e os maiores centro de consumo de energia (com o subsistema nordeste correspondendo a apenas 16% do consumo brasileiro de energia)[2]. Sem dúvida, esses dois cenários são os maiores desafios ao Poder Público e aos Empreendedores para a geração de energia renovável e sua sobrevivência futura no país.
Demonstrando a dramaticidade da situação, atualmente convivemos com cortes equivalentes a quase um terço de toda a geração renovável do país (eólicas e solares) apenas no ano de 2024, o que tem trazido fortes questionamentos quanto à viabilidade dos parques que estão mais sujeitos ao curtailment, diante da crescente necessidade de renegociação dos financiamentos juntamente às instituições financeiras[3] ou mesmo a judicializações desse tema visando a imposição de ressarcimentos aos Empreendedores ou a suspensão destes cortes de geração[4].
Como resultado de tal conjuntura, vislumbramos um cenário paradoxal, qual seja, enquanto a inovação disruptiva na produção dos equipamentos para a construção de parques solares e eólicos declinam fortemente (cerca de 50% entre 2023 e 2024)[5], a discussão brasileira cinge-se à divisão do custo distributivo do curtailment.
Diante dos efeitos deletérios causados pelo curtailment à geração renovável no país, imprescindível que sejam estabelecidas certas premissas iniciais na busca de soluções para um problema técnico e financeiramente desafiador, quais sejam: um desfecho com o melhor alternativa técnica; pelo menor custo global para agentes setoriais, consumidores e para o Poder Público; apoio à inovação e a eficiência nos equipamentos e na operação; e regulação adequada aos eventuais custos oriundos do curtailment.
Necessário salientar que no contexto global não há uma resposta unívoca à alocação de custos do curtailment, com diferentes soluções específicas para cada contexto, sendo excepcional os casos em que o custo do curtailment é compensado (principalmente França, Alemanha e parte dos ativos no Reino Unido), sendo observados também esquemas nos quais os custos do curtailment são proporcionalmente divididos entre os geradores renováveis (Chile) ou uma incluindo também os projetos de MMGD; e casos como Japão, México, Brasil, Austrália e Coreia do Sul nos quais o custo do curtailment é arcado integralmente pelos geradores.
Na busca por uma solução para um problema com reflexos tão grandes sobre a sustentabilidade e expansão dos investimentos em geração renovável, importante que a discussão seja graduada e ampliada, sendo importante a compreensão do cenário internacional, mas sem que haja a importação acrítica e automática de soluções estrangeiras. Até porque, como se sabe, o setor elétrico brasileiro é um dos mais completos e complexos sistema elétricos do mundo.
Tal cuidado se faz necessário em razão das peculiaridades do Brasil, caracterizada pela concentração geográfica da capacidade de geração renovável nos extremos do país e a maior acúmulo de consumo de energia nas regiões sudeste e centro-oeste, evitando-se assim que sejam intensificadas as já intensas distorções financeiras e operacionais entre as regões brasileiras e os inadequados sinais regulatórios que fustigam o setor elétrico.
Nesta senda, algumas das alternativas debatidas atualmente para mitigar os efeitos desastrosos do curtailment passam pela: (i) estímulo aos projetos de Hidrogênio Verde – H2V; (ii) implantação e ampliação dos Data Centers; (iii) regulamentação do denominado Sistema de Armazenamento de Energia (“SAE”); e (iv) centralização na operação dos projetos de MMGD e seu impacto ao SIN.
Em relação ao Hidrogênio Verde, uma das alternativas ao excedente de energia destes parques renováveis ou aos riscos pela falta de estrutura de rede para escoamento dessa energia seria justamente a produção de H2V polos próximos aos empreendimentos. Esse primeiro movimento foi realizado com a publicação da Lei 14.948/2024, que instituiu o marco legal do H2V, bem como a chamada pública do programa de P&D de H2V pela Aneel.
Os data centers, por sua vez, tiveram o impulso por meio da recente publicação da MP 1318/2025, que institui um regime especial de tributação e tem como objetivo trazer dados e computação para o Brasil, com energia limpa e custo menor[6]. Essa alternativa poderia viabilizar a alocação de excedente de energia não escoado dos parques de geração renovável nesses data centers.
Já o SAE, deve ser regulamentado pela Aneel após a publicação, no último dia 12/09, do Resultado da Consulta Pública 39/2023, com vistas justamente a colher subsídios para aprimorar a regulação desse armazenamento de energia, mas que, após pedido de vista por um dos Diretores da Agência, se junta a outros diversas temas estruturantes pendentes de uma resposta legal ou regulatória.
Por fim, o debate com maior complexidade e resistência no setor é sem dúvida o controle centralizado dos projetos de MMGD, os quais, por se encontrarem pulverizados e conectados diretamente às instalações de distribuição local, não possuem uma operação racionalizada e eficiência do ONS, afetando sobremaneira os cortes de geração desses parques renováveis.
Adicionalmente ao paradoxo que o curtailment expõe o setor, elevando custos, pressionando os consumidores e incrementando os riscos do financiamento do sistema, imprescindível apontar a insuficiência das MPs 1300 /2025 e 1304/2025 para a apresentação das soluções que o setor tanto precisa.
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Como uma potencial agenda para o futuro do setor, o primeiro ponto seria a regulação da abertura do mercado de energia, com a divisão proporcional de custos de segurança do suprimento entre o mercado livre e cativo; incentivo massivo aos projetos de eficiência energética para a redução do custo de subsídios a grupos beneficiados; regulamentação do supridor de última instância visando à segurança do suprimento e modicidade tarifária; revisão dos subsídios setoriais, com calendário de redução dos subsídios; incentivo ao programa de resposta da demanda, assim como fomento aos recursos distribuídos.
Com essa agenda mínima avançando, poderemos finalmente aproveitar o efeito disruptivo causado pela inovação no setor de renováveis, possibilitando uma redução do custo de energia, com segurança do suprimento, competitividade entre as fontes com seus distintos atributos, respeito às garantias legais dos geradores, distribuição justa do custo dos subsídios (reduzindo-se os que sejam desnecessários) e incentivo à agregação de novas tecnologias no setor.
[1] AURORA ENERGY RESEARCH. The Future of Curtailment in Brazil Diagnosis, Projections, and Investment Strategies. p. 7
[2] AURORA ENERGY RESEARCH. The Future of Curtailment in Brazil Diagnosis, Projections, and Investment Strategies. p. 15
[3] VALOR ECONÔMICO. Cortes de geração levam empresas a renegociar com bancos. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2025/09/02/cortes-de-geracao-levam-empresas-a-renegociar-com-bancos.ghtml Acesso: 21 set. 2025
[4] VALOR ECONÔMICO. Cortes de geração provocam onda de judicialização no setor elétrico. https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/12/27/corte-de-geracao-provoca-onda-de-judicializacao-no-setor-eletrico.ghtml Acesso: 23 set. 2025
[5] IEA. Solar PV. Disponível em: https://www.iea.org/energy-system/renewables/solar-pv Acesso: 21 set. 2025
[6] Agência Câmara de Notícias. Medida Provisória busca impulsionar instalação de datacenters no Brasil. https://www.camara.leg.br/noticias/1201670-medida-provisoria-busca-impulsionar-instalacao-de-datacenters-no-brasil/