O Crisp-UFMG no JOTA: a Seção Thais Duarte

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A proposta da Seção “Thais Duarte” da coluna Para Além do Estado e do Direito é apresentar o trabalho realizado no âmbito do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na produção e análise de dados sobre criminalidade, segurança pública, justiça criminal e sistema prisional. Com isso, em convergência com a proposta geral, pretendemos contribuir para o debate público nessas áreas, que muitas das vezes é mediado por medos, inseguranças, vieses e, sobretudo, pelo uso da violência—física e simbólica.

Para tanto, propomos retomar a bem-sucedida experiência que tivemos durante a pandemia (a coluna “Por Elas”), mas agora dentro de uma nova casa: o JOTA, espaço ao qual agradecemos imensamente pela acolhida. Nesta oportunidade, também propomos uma homenagem à nossa querida amiga e companheira, Thais Lemos Duarte. Thais que contribuiu imensamente para o debate na área, sobretudo, de forma menos violenta e tortuosa, publicando quase uma centena de trabalhos em menos de 40 anos de vida.

Neste texto de abertura, contamos um pouco da nossa experiência na coluna “Por Elas”, durante a pandemia. Uma experiência que esperamos desenvolver ainda mais aqui no JOTA, com esta seção que leva o nome da nossa querida Thais.

O passado

Passaram-se mais de quatro anos desde que o mundo se deparou com a notícia da crise sanitária e humanitária causada pela pandemia da Covid-19. Foram vários e vários meses de incertezas, distanciamento social, polêmicas sobre as conduções políticas da situação, lutos. No Brasil, chegamos à marca de 3.541 mortes em um único dia, no final de março de 2021. Esse período é ainda uma ferida pouco cicatrizada, que nos traz uma dualidade temporal: quatro anos passados da mais recente pandemia é tempo demais ou ainda é recente?

Certamente, cada um/a terá uma resposta diante desse questionamento. Fato é que as marcas desse acontecimento ainda estão presentes, não só pela dor da perda e do luto, mas também porque tivemos que fazer diversas adequações no modo que víamos e vivíamos nosso cotidiano.

O isolamento social, por exemplo, nos fez abandonar as instalações das nossas universidades, adequarmos nossas pesquisas e passarmos um período a sós com nossas próprias reflexões e ideias científicas. Foi, realmente, um momento de grande solidão. Passados dois meses da declaração pandêmica pela OMS, mobilizadas pelo desejo de estarmos unidas academicamente, ainda que distantes fisicamente, um coletivo de mulheres do Crisp-UFMG se organizou em reuniões mensais para construirmos juntas projetos científicos.

As reuniões resultaram em um livro, organizado e escrito por mulheres, sobre a situação das mulheres privadas de liberdade em Belo Horizonte. Também demos início à coluna “Por Elas” publicada quinzenalmente na plataforma “Justificando”. Na época, o site se dedicava à divulgação de estudos científicos do campo da segurança pública, do Direito e de disciplinas afins para um público mais amplo.

A ideia da coluna surgiu pela necessidade da divulgação de informações e análises consistentes diante de um contexto de profunda desinformação. Isso porque parte da sociedade civil divulgava notícias falsas e pseudocientíficas a respeito do tratamento, gravidade e riscos da disseminação do vírus. Pior ainda, parte da sociedade médica, parlamentares e membros do governo federal contribuiam para a divulgação dessas fake news.

Somava-se a isso um “apagão de dados” oficiais, que não nos permitia saber a realidade da pandemia nas instituições e nos indivíduos que compõem o Sistema de Justiça Criminal, mobilizando institutos na busca por tais esclarecimentos. Assim, sentimos a necessidade de difundir, para além do contexto acadêmico, análises bem fundamentadas sobre os impactos que a Covid-19 trazia no âmbito da segurança pública.

Deste modo, ao longo de um ano e meio, assumimos um compromisso de divulgar analiticamente dados e, desta forma, contribuir para o debate público.

Em um primeiro momento, nos concentramos na relação entre pandemia e segurança pública. Depois, ampliamos o escopo de nossas produções para além da crise sanitária. No total, foram mais de 80 artigos publicados. Neles, abordamos temas como o aumento da letalidade policial que o país vivenciava, a militarização e a violência nas escolas, que também cresciam, e a redução do uso das audiências de custódia no sistema judiciário.

Também produzimos textos sobre dinâmicas criminais, sobre flexibilização da posse e do porte de armas e sobre o desmonte dos órgãos de prevenção à tortura. A insegurança dos/as profissionais de segurança pública, as violações de direitos no sistema prisional, a realidade dos egressos dos cárceres e a vida da população em situação de rua também foram objeto de nossas análises.

Estivemos também atentas à violência contra crianças e adolescentes, ao número alarmante de denúncias de violência doméstica, à cultura do estupro, e à situação de mulheres gestantes, mães e pessoas LGBTQIA+ sob custódia do Estado, entre outros tantos assuntos de importância fundamental para o Brasil.

Circulávamos, é fato, por uma diversidade de temáticas. Havia, porém, algo que perpassava todas as nossas publicações e discussões no “Por Elas”: o marcador de gênero. Fosse como foco principal, fosse como pano de fundo das nossas experiências acadêmicas e vivências pessoais, o gênero estava sempre lá.

Essa realidade chegou às nossas leitoras/es. Testemunhamos uma considerável adesão à coluna, tanto em contextos acadêmicos quanto (e, principalmente) fora deles. A necessidade de pensarmos nossas questões atravessadas por marcadores de gênero se apresentava como uma demanda latente, principalmente em um campo em que este marcador é estrutural e estruturante.

O presente

Dois anos após o encerramento das atividades da plataforma que abrigava nossa coluna, estamos em um contexto paradoxalmente similar e profundamente diferente. A pandemia foi controlada, graças à campanha de vacinação e aos esforços de pesquisadores da área da saúde. Contudo, a disseminação de informações falsas, opiniões fundamentadas em pseudociências ou crenças pessoais, e discursos de ódio seguem a todo vapor.

É verdade que saímos, recentemente, de um período de quatro anos de governo de extrema direita sob Jair Bolsonaro (PL) e iniciamos uma nova etapa do país, com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder. O novo governo, em oposição ao anterior, prega o discurso de defesa da ciência e do uso de evidências empíricas para a construção de políticas públicas.

O cenário, porém, está longe de ser simples: o extremismo de direita e as notícias falsas adquiriram uma profunda capilaridade social. Os quatro anos de um regime punitivo, de desmonte de direitos humanos e exaltação da violência parecem ter culminado em uma fragmentação social difícil de ser contornada. Um exemplo claro disso é o aumento expressivo de violência nas escolas que temos presenciado recentemente, além de diversas ameaças a instituições escolares.

Há, ainda, uma cruel convergência no horizonte desses ataques e outras formas de violência cometidas por crianças e adolescentes: a presença de fóruns com discursos de ódio a mulheres e pessoas negras. Violações que se iniciam no mundo virtual e transbordam para além das telas dos computadores e celulares, embasadas em uma adesão, preocupante, a movimentos abertamente misóginos e racistas, como redpill e incel, que têm disseminado nas redes sociais seus discursos balizados pela masculinidade hegemônica, estruturada na agressividade, dominação e submissão das mulheres e pessoas negras.

Não à toa, são as/os jovens negras/os e mulheres aquelas que ainda estão mais expostas às vulnerabilidades sociais e violências. Para se ter uma ideia dessa realidade, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano de 2023, demonstrou um crescimento de todos os índices de violência de gênero no ano anterior. Em 2022 atingimos o triste marco do maior registro de estupro e estupro de vulnerável da série histórica, chegando a 74.930 vítimas, sendo 65.569 mulheres. Necessário dizer que 56,8% delas eram negras. O mesmo ocorre com o número de mulheres mortas em razão de seu gênero.

Em 2022 o ódio às mulheres matou 1.437 de nós, um crescimento de 6,1% em relação a 2021. Quando o dado é desagregado por raça, 61,1% das vítimas de feminicídio eram negras. Raça e gênero parecem ser fatores agravantes para se viver no Brasil, a exposição à violência e a possibilidade de se tornar vítima cresce sobremaneira quando há uma intersecção entre esses dois marcadores sociais. Entretanto, não parece ser muito diferente quando eles aparecem separados. Jovens negros de periferia permanecem sendo alvos preferenciais para abordagens e condenações, sendo as vítimas fatais das chacinas ou da morte social nos presídios brasileiros.

Diante desse cenário, acreditamos que o terceiro mandato de Lula poderia trazer novidades para os antigos problemas de segurança pública no país. Entretanto, o que temos percebido é que o atual governo pouco inova em suas propostas para o campo da segurança pública. Assim, mantém o foco quase exclusivamente nas polícias e na perpetuação da lógica punitiva e encarceradora, medidas que são claramente insuficientes e fadadas ao fracasso, especialmente quando o intuito que se tem é o de controlar as violências que observamos em nosso país.

Mesmo a proposta de voltar com uma política de controle de armas mais responsivo parece ser cada vez mais abandonada, diante de pressões da bancada da bala, apoiada pelas bancadas do boi e da Bíblia. De tal forma, assistimos ao oposto da perspectiva de uma segurança pública cidadã, construída com base nos direitos humanos.

Diante deste contexto, passados quatro anos desde que nosso primeiro artigo, em conjunto, foi publicado, voltamos. Agora aqui no JOTA, com novas e novos integrantes. Entretanto, seguimos com a mesma vontade de difundir análises científicas, construir e ampliar debates, disseminar dados empíricos e pautar a agenda de segurança pública ancorada na perspectiva de gênero e das relações raciais.

Estaremos aqui todas as segundas quintas-feiras do mês, falando sobre as dinâmicas de violência, segurança pública, instituições do Sistema de Justiça Criminal, indivíduos privados de liberdade e profissionais da segurança. Temas sempre interseccionados com raça e /ou gênero.

Retomar esse projeto traz um misto de sensações, assim como a distância temporal pandêmica. Ainda que estejamos unidas/os pela alegria de contribuímos, mais uma vez, com a divulgação acessível de análises científicas, falta uma parte importante desse projeto entre nós, desde quando era apenas uma idealização, a Thais Duarte — que será sempre lembrada e homenageada por nós. Nossa seção é inaugurada hoje, levando o seu nome e com a promessa de mantermos sempre vivas/os o seu legado.

Thais Duarte, carioca, mas grandiosa o suficiente para se fazer parte de Minas Gerais, Brasília e todos os outros lugares por onde passou. Era socióloga, atenta ao sistema prisional, desde as relações estabelecidas ali dentro, como também os seus transbordamentos familiares e nas dinâmicas criminais.  E assim como seu interesse em compreender o fenômeno da tortura dentro da segurança pública, ela transformou seus interesses de pesquisa em força de militância política.

Thais, pesquisadora do Crisp, coordenou diversos projetos, publicou dezenas de artigos e construiu parcerias. Foi ela quem idealizou nossa primeira coluna, sendo coautora de diversos textos produzidos por lá. Em 2023, nos deixou. Fisicamente, se encantou. Levou parte de nós e muito nos deixou. Thais presente e celebrada, sempre!