O presente artigo objetiva discorrer sobre um dos modelos possíveis de Contencioso Judicial no âmbito da reforma tributária sobre o consumo, instituída pela Emenda Constitucional 132/2023, atualmente regulamentada pela Lei Complementar 214/2025 quanto a aspectos atinentes aos tributos criados em substituição ao sistema atual.
A importância do debate sobre o Contencioso Judicial se justifica exatamente pelo momento atual de tramitação de tal Projeto de Lei Complementar, para que se pondere quais modelos atenderiam mais adequadamente aos anseios de segurança jurídica, para melhoria do ambiente de negócios, dentro das alternativas possíveis à escolha do legislador.
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A alternativa aqui sugerida se refere à criação de uma nova Justiça especializada, de âmbito nacional, por meio de nova competência constitucional do Judiciário, mas outras alternativas também seriam possíveis, a depender do alinhamento de interesses em torno da arrecadação do IBS/CBS entre União, estados e municípios.
O STJ trouxe como alternativa à aqui tratada a concentração da resolução de litígios de IBS/CBS à Justiça Federal, mas tal solução, como qualquer outra, irá depender de alinhamento político entre os entes federativos, especialmente pela perda do poder arrecadatório do ente que transfere a outro a cobrança judicial da dívida ativa[1].
A importância da conjugação política de interesses foi muito bem destacada na coluna Pauta Fiscal publicada neste JOTA em 10/08/2025[2].
Sobre o modelo aqui trazido à análise, a Emenda Constitucional 132 permitiu que os entes federados (União, estados, municípios e Distrito Federal) tributem as mesmas operações com o chamado IVA dual, que nada mais é do que a instituição do IBS e da CBS sobre todas as operações onerosas e mesmo não onerosas em certas situações com direitos, bens e serviços.
Isto é, a base é ampla e sem a atribuição de competência de tributar específica aos entes federados, o que difere do regime atual em que a Constituição trouxe a divisão de competências tributárias bem definidas.
Com o sistema de base tributável compartilhada, disposta no artigo 195, V, §16, da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional 132, cabe ponderar sobre as competências atuais da Justiça Estadual e Federal, caso fossem transportadas automaticamente para o sistema IVA dual (IBS/CBS).
Neste contexto, a definição de um IVA dual não imporia necessariamente a instituição de uma Justiça dual automática, uma vez que a dualidade foi criada especialmente para endereçar os anseios dos estados e municípios/DF em não perderem totalmente o controle sobre a instituição e gestão do produto de arrecadação do ICMS e ISS, que serão substituídos pelo IBS.
Por outro lado, o julgamento em torno do IVA dual (IBS/CBS) poderia correr o risco de receber tratamento jurisprudencial desigual para tributos de mesma base de incidência, por isto a proposição da criação de uma justiça unificada no julgamento das questões envolvendo os novos tributos, por meio de proposta de emenda à Constituição (PEC).
Tal unificação do Judiciário exige mais regramentos do que a previsão do §3º, do artigo 145, da Constituição Federal, incluído pela EC 132, que estabelece a simplicidade e a cooperação como princípios do Sistema Tributário Nacional,
Além disso, o artigo 105, I, “j”, da Constituição, estabelece que o STJ promoverá a resolução de conflitos de competência entre os entes federativos e entre estes e o Comitê Gestor, mas esta regra não significa a instituição automática de uma Justiça para julgar os novos tributos, e sim que o STJ terá o papel de harmonizar as interpretações das normas em torno do IBS/CBS, para se evitarem decisões díspares sobre tributos de idêntica estrutura.
Também não é suficiente a previsão de integração e compartilhamento de informações entre a União, Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e Comitê Gestor do IBS (artigo 156-B, §§6ºe 8º, da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional 132).
A mesma cooperação e integração foram dispostas na Lei Complementar 214/2025, que previu que “o Comitê Gestor do IBS e a RFB atuarão de forma conjunta para implementar soluções integradas para a administração do IBS e da CBS, sem prejuízo das respectivas competências legais”.
A par de todas as disposições que tratem de harmonização das normas e da interpretação desde o contencioso administrativo, muitas das matérias inevitavelmente continuariam a desaguar no Poder Judiciário, a teor do artigo 91, §3º, do PLP 108/2024, que veda o afastamento da legislação tributária sob fundamento de inconstitucionalidade e ilegalidade, além do que todo o contencioso proposto originalmente pelos contribuintes terão início no Poder Judiciário.
A atribuição de jurisdição às Justiças Federal e Estadual focada prioritariamente, ainda que não exclusivamente, no julgamento de questões tributárias, inclusive envolvendo o IVA dual, teria o benefício de acumular conhecimento técnico focado em assuntos tributários e, com isto, trazer decisões cada vez mais customizadas ao novo sistema tributário e inclusive ao atual.
Esse modelo manteria a observância pelo Poder Judiciário das competências tributárias atuais dos entes federados, pois o julgamento compartilhado seria do IBS/CBS, mas não dos tributos do sistema atual.
Não se pode perder de vista que juntamente com o contencioso dos novos tributos, se manterá todo um acervo de contencioso judicial já existente em torno dos tributos atuais, igualmente com necessidade de orçamento para sua manutenção e custeio.
De toda a forma, deixar para o STJ, quando o processo já estiver avançado, a incumbência de harmonizar entendimentos entre Justiça Estadual e Federal poderá levar a maiores delongas para a resolução do litígio, o que aumentaria a insegurança jurídica.
Por isto, uma eventual nova atribuição de jurisdição às Justiças Federal e Estatuais, por meio de Varas focadas em assuntos tributários (não exclusivamente, mas prioritariamente), com a criação de uma nova Justiça com nova base constitucional, poderia eventualmente aproveitar em certa medida e ampliar o aparato judiciário já existente, visando à otimização do gasto público.
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A atribuição do julgamento conjunto aos juízes federais e estaduais, também poderia dirimir eventuais controvérsias em torno de qual Justiça Estadual seria competente para apreciação de matérias envolvendo IBS, tendo em vista que a tributação ocorrerá no destino, mas há situações em que haveria uma espécie de limbo sobre o local em que considerado ocorrido o consumo, como por exemplo, uma compra online cuja entrega deve ser feita em Estado distinto do comprador (endereço de faturamento diverso do endereço de entrega).
O caminho proposto claramente estará sujeito a aprimoramentos ao longo de sua idealização e aplicação prática, mas o objetivo seria a adequação do contencioso judicial ao julgamento de questões sobre IBS/CBS, tributos de mesma base de incidência, com vistas a mitigar os dispêndios públicos, buscar a simplicidade e cooperação entre as jurisdições federal e estaduais, evitar decisões conflitantes e a harmonização do entendimento apenas em fase avançada do processo (STJ), além de sanear eventuais conflitos de competência com o deslocamento da tributação ao Estado de destino.
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Este texto é fruto das discussões ocorridas no Núcleo do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, na linha de pesquisa “Questões Contemporâneas do Contencioso Tributário”, em relação ao projeto “Reforma do Processo e seus Impactos na Reforma Tributária”
[1] Relatório site STJ de abril de 2025: “Impactos da Reforma Tributária no Poder Judiciário”
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/os-instrumentos-da-ordem-processual-para-resolucao-do-conflito-tributario-na-cbs-e-no-ibs