À medida que a reforma tributária se aproxima, torna-se evidente que o arcabouço legal vigente não está preparado para a mudança iminente. Enfrentamos o desafio de estabelecer um novo conjunto de normas, enquanto sinais de instabilidade, simbolizados por vulcões prestes a entrar em erupção, despontam no horizonte.
Quem atua no contencioso tributário têm enfrentado um persistente desconforto devido a uma legislação processual fragmentada e obsoleta, inadequada para a realidade de um Estado Democrático de Direito, uma vez que foi concebida, tanto no aspecto material, quando processual, sob um regime ditatorial.
O resultado é uma série de litígios ainda pendentes de resolução, que oscilam entre a interpretação da norma vigente e a necessidade arrecadatória do Fisco diante dos direitos fundamentais do contribuinte, que muitas vezes diz respeito apenas ao cumprimento da legalidade. Nesse cenário, a reforma tributária surge como um farol de esperança para muitos, mas também acende um alerta para possíveis tempestades no horizonte.
A jurisprudência vem interpretando em tiras a legislação. Um exemplo nada novo, mas que exemplifica bem essa situação é a falaciosa aplicação do princípio da supremacia do interesse público no contexto da súmula vinculante 28 do Supremo Tribunal Federal (STF), quando ali está claro ser inconstitucional a exigência de depósito para viabilizar a ação judicial, mas ainda assim, valida-se a exigência de garantia como pré-requisito para o oferecimento de embargos à execução, nos termos do exigido pelo art. 16, § 1º da Lei 6.830/1980, tratando depósito – que é uma garantia – como outra coisa, diferente de garantia.
Adicionalmente, o prolongado tempo médio de duração dos processos judiciais tributários no Brasil, chegando a quase 19 anos, é incompatível com a dinâmica atual do mundo empresarial, onde decisões estratégicas são tomadas de maneira ágil para garantir a competitividade e viabilidade dos negócios. O impacto dessa morosidade é vasto: em 2019, o contencioso tributário atingiu a marca espantosa de 75% do PIB, conforme revelado pelo Insper, o que equivalia à época a R$ 5.4 bilhões.
O caos vivenciado diariamente no contencioso tributário motivou a formação de uma comissão de juristas que, em 2022, propôs dez projetos de lei visando reformar o sistema. Entretanto, a essencial reforma processual foi ofuscada pela reforma do direito material, que, apesar de ser prioritária e amplamente debatida, tende a agravar a situação pela falta de adequação da legislação processual existente.
O primeiro problema que a reforma tributária veiculada pela PEC 45-A trará será estrutural, relativamente ao contencioso tributário administrativo e judicial a ser instaurado relativamente ao IBS e a CBS.
Diz-se isso porque ambos os tributos são espécies de “irmãos gêmeos” contudo, separados na maternidade, um ficará a cargo do Conselho Federativo e o outro ficará a cargo da União. Portanto o contencioso administrativo do IBS será no conselho, enquanto o da CBS será no Carf. Não temos dúvidas de que interpretações diversas surgirão sobre conceitos idênticos, e não haverá nada para uniformizar isso. Após o que, se o contribuinte perder, deverá recorrer ao Poder Judiciário, que também será acionado em estruturas diferentes a depender do tributo questionado: CBS será na justiça federal e IBS na justiça estadual.
Interpretações divergentes sobre conceitos idênticos veiculadas por estruturas de julgamento distintas que não se subordinam ou se encontram vão conviver no ordenamento e orientar condutas até que, talvez depois de décadas, os Tribunais Superiores possam chegar a uma resolução unificada, ou não.
Uma sugestão seria usar o incidente de resolução de demandas repetitivas para acionar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e uniformizar esse tipo de divergência interpretativa entre o IBS e a CBS, num incidente processual que geraria estabilidade nas demandas e uso dos conceitos, garantindo segurança jurídica para a interpretação de conceitos idênticos e sua aplicação.
Para isso, seria necessária a inclusão de uma competência originária no STJ para julgamento desse incidente a ser suscitado de modo incidental nos processos pelas partes, com o fito de permitir que a Corte Superior uniformize a premissa e a partir dessa fixação seja viável seguir o julgamento do caso.
A versão mais recente da reforma tributária apresenta um vislumbre de progresso significativo: sugere a possibilidade de atribuir ao STJ a competência originária para processar e julgar conflitos entre os entes federativos ou entre esses e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, especificamente nos casos concernentes aos tributos delineados nos artigos 156-A e 195, V.
Porém, ainda tem mais um elemento de complexidade: Permanece no texto constitucional a atribuição do STF para a resolução de conflitos federativos. A introdução da nova competência gera questões relevantes sobre como será determinada a jurisdição adequada — se o conflito é diretamente ou indiretamente relacionado aos tributos em questão, e como isso influenciará a uniformidade das decisões.
Para além da questão estrutural, o contencioso tributário, nos remete à formação e aplicação dos precedentes, como nova norma advinda da análise fático-jurídica. Se há dúvidas e ajustes necessários no sistema atual, após reforma, não é difícil concluir que os desafios se multiplicarão.
Os precedentes são instrumentos que – se bem aplicados, visam garantir o direito constitucional à segurança jurídica, a proteção da confiança com a manutenção da coerência. Nos dizeres de Roque Carrazza[1], a segurança jurídica exige que os contribuintes tenham condições de antecipar objetivamente seus direitos e deveres tributários. Mas surge a nova questão: como serão formados e observados os precedentes na nova sistemática após a reforma tributária?
Não há dúvidas que, mesmo com o intuito de se reduzir o contencioso com a implementação da reforma tributária, o que se vislumbra são novas discussões, novos questionamentos, novos conceitos para serem aplicados aos mesmos fatos jurídicos antes analisados.
Sabe quando se vê algo sob uma nova perspectiva e novo ângulo? É o exercício a que estaremos sujeitos nos próximos anos. Os fatos negociais e as atividades exercidas não se modificam. O que se altera com a reforma é a forma da incidência tributária sobre estes.
Os textos, sejam as normas estabelecidas pela reforma, sejam os precedentes, são linguagem que apresentam possíveis significados, por vezes complexos, e que são definidos a partir da atribuição de significado pela atividade do intérprete.
A interpretação é o pilar mais importante. Bem como seus limites. É o que foi reforçado por artigo anterior neste veículo pelos Autores Nina Pencak e Victor Pinheiro, de que a interpretação dos precedentes é complexa e exige a análise do contexto fático, processual e argumentativo[2].
Interpretação que se torna ainda mais relevante diante de fatos analisados na sistemática atual. Fatos estes que geraram precedentes e, portanto, legítima confiança ao contribuinte de como será tributada a sua atividade. Conceitos, com a força dos precedentes, que deverão ser utilizados no novo cenário legislativo para garantia da segurança jurídica.
A única certeza que temos é que o caminho à frente é intrincado e requer uma navegação cuidadosa para assegurar que o objetivo da reforma — a simplificação e a eficácia do sistema tributário — seja alcançado.
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Este artigo é parte integrante da série “A reforma tributária por elas”. A série, sob a coordenação de Luiza Leite, faz parte do projeto “Mulheres no Tributário”
[1] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 30ª ed., São Paulo: Malheiros, 2015, p. 357 e 419.
[2] PENCAK, NINA e PINHEIRO, VICTOR MARCEL. Jota. A Recomendação 134/22 do CNJ e o sistema brasileiro de precedentes. Publicado em 15/11/2022. Disponível em:< https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/.> Acesso em 10/01/2023.