As Cortes Constitucionais – abandonando tradicional posição de clausura e retaguarda institucional – estão a assumir progressivo protagonismo republicano, invadindo aspectos de decisão coletiva até então exclusivas às forças políticas genuínas, os Parlamentos e governos eleitos.
O fenômeno ganha relevo mundo afora, trazendo para seara do debate público importante e difícil questão estrutural do poder: determinar a fronteira de legitimidade constitucional da decisão judicial e os riscos de subversão da democracia por opções decisórias prolatadas por agentes de Estado despidos de voto e representação popular. Ou seja, o voto elege, mas não mais decide.
A matéria é absolutamente complexa, pois versa sobre movediças lógicas de poder e não apenas sobre limites estanques de legalidade. Em que pese a complexidade estrutural do problema posto, torna-se cogente a análise ainda que sem juízos conclusivos categóricos. Isso porque os fatos estão aí aos olhos de todos; impossível negar as evidências.
Ilustrativamente, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidirá, nos próximos meses, se Donald Trump poderá ou não concorrer à Casa Branca, sob a alegação de suposta participação na inédita invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021. No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro responde a diversos processos judiciais que poderão culminar com sua inelegibilidade política. Na Argentina, o recém-empossado presidente Javier Milei já enfrenta severa judicialização sobre medidas políticas anunciadas. E, como cereja do bolo, para espanto da comunidade internacional, a candidata oposicionista María Corina Machado restou afastada do pleito presidencial por imperial decisão do Supremo Tribunal venezuelano.
Em outras palavras, questões políticas – que deveriam ser politicamente resolvidas – acabam sendo embrulhadas em teses judiciais oportunísticas para febril acesso à jurisdição constitucional. Tais expedientes de empreitada, além de subverter o devido processo legal (que para ser “devido” pressupõe iniciativa judiciosa e responsável do direito de ação), acabam por reduzir o espaço de discussão e debate de assuntos políticos, privando a democracia da exuberância e riqueza da dialética parlamentar em favor de decisionismos de ocasião, não raro, tomados monocrática e unipessoalmente. Sem reboco, a provocação excessiva e a consequente banalização da jurisdição constitucional apenas trazem malefícios institucionais: apequenam a classe política e expõem demasiadamente os Tribunais Supremos a problemas que não são seus.
Com olhar alto e absolutamente consciente dos limites da suprema magistratura, a inteligência pulsante do grande Aliomar Baleeiro fez antever em voto lapidar:
“Hoje, temos o poder formidável de declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, anulando as atribuições do Congresso. Um justice da Corte Suprema dos Estados Unidos já disse que, ‘quando há impressão de que a lei não é boa, sempre arranjamos um motivozinho para declará-la inconstitucional’. Essa inclinação satânica do poder político — e este é um poder político — pode levar-nos a fricções que nunca houve, nos 77 ou 78 anos da vida republicana brasileira, entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal” (STF, Pleno, j. 19.10.1967).
O tempo correu, traçando caminhos sinuosos. Entre formas diretas ou expedientes indiretos, a autoridade do voto – essência da democracia – atravessa jornada de relativização com delicadas fricções institucionais. Em certas latitudes, não basta mais ganhar nas urnas, pois também é preciso vencer nos tribunais. Sim, é lição basilar que os eleitos não podem tudo. Na República, ninguém pode tudo. Há limites intransponíveis que, frisa-se, também circundam a atividade jurisdicional.
Todavia, diante do impressionante vazio qualitativo da política, o poder – teoricamente democrático – passou a ser deslocado para outras instâncias que, sob o argumento constitucional de defesa da Democracia, acabam justamente por dilapidá-la. Trata-se, assim, de anômalo “constitucionalismo antidemocrático”.
Em página alta da Suprema Corte americana, a cultura invulgar de Felix Frankfurter bem ponderou que o poder judicial não está imune à fraqueza humana, reafirmando “não ser função deste Tribunal pronunciar políticas” e que a “autocontenção é essencial na observância do juramento judicial, pois a Constituição não autorizou os juízes a julgar a sabedoria do que o Congresso e o Executivo fazem”. Tal sabedoria, uma vez tomada pela maioria democrática, deve ser cumprida e respeitada e, não, subvertida em expedientes judiciais casuístas para apenas atender anseios infantis de grupos minoritários que simplesmente não aprenderam a conviver com derrotas políticas e eleitorais.
Ora, democracia também é saber perder. Só em ditaduras um lado ganha sempre. E há derrotas políticas impassíveis de serem juridicamente revertidas porque materialmente políticas e, não, jurídicas. Em outras palavras, assim como deputado não lavra sentença, juiz não edita lei. Ainda, se um governante decide pintar uma escola de azul, não cabe ao julgador tachar o azul de inconstitucional e determinar a pintura em amarelo. Há, portanto, limites, ou melhor, competências constitucionais partilhadas que, em uma República sadia, são exercidas de forma coordenada e sem extravasões. Do contrário, ao invés de harmonia entre Poderes, teremos hipertrofias autocráticas tão características das Repúblicas doentes, quiçá, decadentes.
Por tudo, não cabe aos tribunais consertar a política; os erros e insuficiências da política devem ser politicamente resolvidos, por melhor que seja a boa intenção do julgador. Aliás, se os representantes do povo são ruins, decisões judiciais não os farão melhor, embora possam – e devam – realçar sua feiura e inaptidão. O constitucionalismo pode até tentar, mas não salvará a democracia. A afirmação pode soar trágica, embora apenas ecoe lembrete basilar: se a República exige juízes justos, a Democracia requer bons políticos. Se os temos? Eis o fundo gargalo democrático da contemporaneidade.