No último dia 2 de setembro teve início, na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o julgamento dos réus acusados de tentativa de golpe de Estado. Enquanto isso, nas ruas de Brasília e na avenida Paulista, em São Paulo, grupos bolsonaristas protestavam contra o tribunal sob a velha retórica de “censura” e “ditadura do STF”. Nos gabinetes do Congresso e até mesmo no interior do próprio Supremo, ecoava em paralelo o discurso da “autocontenção judicial”, vocalizado pelo ministro André Mendonça como uma espécie de antídoto à acusação de ativismo.
Essa cena, contudo, não é inédita. Desde o governo Bolsonaro, críticas ao papel contramajoritário do STF tornaram-se parte da gramática constitucional brasileira, mas agora ganham um novo fôlego diante do redesenho do constitucionalismo conservador nos Estados Unidos.
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A vitória de Donald Trump em 2024, acompanhada da ascensão meteórica de seu vice-presidente, J.D. Vance, trouxe para o debate global a ideia de que tribunais deveriam se submeter a um “bem comum” definido pela maioria política de turno. Vance, entusiasta da guerra cultural e de aspirações pós-liberais, já afirmou em rede social em fevereiro deste ano que cortes constitucionais não devem interferir em medidas do Executivo — mesmo quando essas medidas colidam frontalmente com direitos fundamentais.
Não se trata de um delírio isolado. Como observou o cientista político Scott Cummings, juristas conservadores estadunidenses têm dado forma, desde 2023, a um “pensamento constitucional do trumpismo”.
A proposta combina originalismo seletivo, moralismo religioso e social e instrumentalização da separação de poderes para consolidar um projeto reacionário. O risco para o Brasil é conhecido: do mesmo modo que o neoconstitucionalismo foi importado em bloco nos anos 1990 e 2000, há espaço para que versões mais tóxicas de teorias jurídicas estrangeiras sejam transplantadas para cá.
O resultado poderia ser um híbrido peculiar nos restos do bolsonarismo — uma gramática constitucional do bolsotrumpismo.
De fato, desde 2018 o campo jurídico brasileiro abriu brechas para esse tipo de assimilação. Editoras, intelectuais e juristas, figurinhas conhecidas ou não, ligados ao tradicionalismo conservador encontraram, no bolsonarismo, a chance de inserir no debate público conceitos até então menos partidarizados, como “originalismo”, “juristocracia”, “estado de exceção”, “ativismo judicial” e “direito natural”.
O fenômeno, que poderia parecer episódico, ganhou densidade extrainstitucional com o surgimento de associações como a Abrajuc (Associação Brasileira de Juristas Conservadores) e o MP Pró-Sociedade, que transformaram bandeiras ideológicas em plataformas de militância jurídica. Não é coincidência: esse movimento espelha, em versão tropicalizada, a ofensiva cultural e jurídica em curso nos EUA.
A expectativa desses grupos é clara: se o trumpismo conseguir sistematizar sua doutrina constitucional, caberá ao Brasil importar mais uma vez, agora em versão reacionária, um modelo alienígena de constitucionalismo que a própria racionalidade jurídica do bolsonarismo não foi capaz de gestar. A questão que se coloca é se a Constituição de 1988 terá condições de resistir.
Alguns caminhos já foram apontados pela literatura recente. Em Curso de Teorias Constitucionais Brasileiras (2023), Breno Baía Magalhães mostra como nossas teorias constitucionais sempre se alimentaram de enxertos externos e de projetos ideológicos essencializantes, mas também como, em momentos decisivos, foi possível construir respostas próprias no marco do texto de 1988.
Do mesmo modo, a coletânea Teoria constitucional brasileira: 200 anos de disputa (2024), organizada por Rubens Glezer, Oscar Vilhena Vieira e Christian Lynch, sugere que a história constitucional brasileira pode ser lida como uma sucessão de embates ideológicos — e que reconhecer essa dimensão política é pré-condição para afirmar um constitucionalismo autêntico.
O desafio, portanto, não é apenas rejeitar a importação de mais uma teoria prêt-à-porter, mas assumir deliberadamente o caráter progressista inscrito em nossa Constituição. O texto de 1988, como lembra Lynch, consagrou pautas que o liberalismo clássico e o conservadorismo preferiram marginalizar: redistribuição de renda, dirigismo econômico, racialidade, sexualidade e gênero como dimensões constitucionais.
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Esses elementos, muitas vezes tratados como periféricos, podem ser justamente a fonte de renovação de um constitucionalismo capaz de enfrentar projetos reacionários transnacionais.
Se o constitucionalismo brasileiro insistir em se manter como reprodutor de modelos estrangeiros, continuará refém das importações — ora liberal-conservadoras, ora neoconstitucionalistas, e agora talvez trumpistas. Mas se souber identificar no texto de 1988 — e nas lutas sociais que lhe dão suporte — um núcleo normativo autêntico, terá condições de elaborar uma gramática própria para responder ao bolsotrumpismo.
Em outras palavras: só um constitucionalismo que se assuma periférico, social e transformador pode resistir a uma agenda que, no fundo, busca esvaziar a própria ideia de Constituição democrática na modernidade.