A ministra Marina Silva enfrentou ataques misóginos no Senado na semana passada, incluindo a fala de um senador dizendo que “a mulher merece respeito, a ministra não”.
O episódio ilustra um fenômeno mais amplo e, agora, cientificamente comprovado: o Congresso brasileiro tem sido majoritariamente hostil à agenda climática que Marina representa.
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O ataque à ministra não foi um caso isolado de desrespeito, mas sintoma de uma resistência estrutural à política ambiental que marca o Legislativo brasileiro. Uma pesquisa inédita do INCT-ReDem comprova essa hostilidade através de dados concretos: durante toda a 56ª legislatura (2019-2022), a Câmara dos Deputados teve postura predominantemente emissora de gases de efeito estufa.
A ciência por trás dos ‘deputados carbônicos’
O estudo criou o CO2-Index, ferramenta que mede o impacto climático da atuação parlamentar. Analisando mais de 600 votações nominais, 2.400 projetos de lei e centenas de discursos, os pesquisadores avaliaram se cada ação legislativa favorecia ou dificultava a emissão de gases de efeito estufa.
Usando dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a metodologia consiste em classificar cada proposição como emissora ou mitigadora e associá-la aos setores econômicos responsáveis pelas emissões. O índice combina três variáveis das ações legislativas: votações nominais, discursos em plenário e projetos propostos.
O resultado é contundente: a mediana do CO2-Index foi positiva, indicando que a maioria dos deputados pontuou acima de 0, revelando comportamento pró-emissões. Em suma, em uma escala em que valores negativos representam ações mitigadoras e positivos indicam posturas emissoras, a Câmara ficou claramente no campo antiambiental.
O deputado mais emissor foi Paulo Ganime (Novo-RJ), enquanto Nilto Tatto (PT-SP) ocupou o posto de maior mitigador. Essa polarização reflete um achado central da pesquisa, uma vez que é possível afirmar uma forte correlação entre posicionamentos emissores e ideologia de direita.
Agronegócio como epicentro das disputas climáticas
A pesquisa confirma as suspeitas apontadas pela literatura sobre a influência do setor agropecuário nas políticas ambientais. Parlamentares ligados à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) apresentaram maior propensão a emitir, sendo o setor agropecuário o que mais aparece em votações e projetos relacionados às mudanças climáticas.
A supremacia do agro nas disputas ambientais não surpreende quem acompanha o Congresso, mas agora temos evidências científicas. Em uma regressão linear múltipla testando a influência de diferentes setores, a FPA mostrou a maior significância estatística para comportamentos emissores. Até mesmo a Frente da Mineração, outro setor primário extrativista, ficou atrás da agropecuária, embora esta também apresente relação com as emissões.
Isso ajuda a entender por que Marina Silva enfrenta tanta resistência. Como defensora histórica de políticas ambientais e funcionando como uma espécie de contraponto ao comportamento emissor do atual governo de Lula, ela representa o oposto exato dos interesses que dominaram o Congresso durante o governo Bolsonaro e que seguem persistindo até então.
Marina está longe de ser uma defensora ambientalista radical, tendo acumulado algumas contradições em sua trajetória – especialmente ao se relacionar com setores ecocapitalistas da economia – e isso diz, na verdade, mais sobre o Congresso: nem mesmo o ambientalismo mais moderado passa pelo crivo da bancada da devastação.
Implicações para a democracia e o clima
Os achados de nossa pesquisa têm peso político e ambiental. Primeiro, revelam que durante um período crucial para o combate às mudanças climáticas – quando o mundo debatia metas mais ambiciosas e o Brasil enfrentava recordes de desmatamento – nosso Congresso atuou majoritariamente na contramão da ciência climática.
Segundo, demonstram como interesses econômicos específicos conseguem moldar a agenda legislativa mesmo quando essa agenda contraria consensos científicos globais. A influência desproporcional do agronegócio nas decisões ambientais sugere um problema de representação: setores econômicos particulares têm mais peso que o interesse público geral na preservação climática.
A correlação entre ideologia de direita e posições antiambientais também indica que a questão climática se tornou refém da polarização política. Isso prejudica a construção de consensos necessários para enfrentar um problema que deveria unir todos os espectros políticos, já que as mudanças climáticas afetam a sociedade inteira.
O que podemos esperar daqui para frente?
Com a nova legislatura e o retorno de Lula ao poder, o cenário pode mudar, mas os dados mostram que a resistência estrutural à agenda ambiental no Congresso vai além de governos específicos. Marina Silva volta a enfrentar as mesmas forças que a fizeram deixar o governo do petista em 2008, e que agora atacam sua legitimidade como ministra.
O CO2-Index oferece uma ferramenta inédita para monitorar se essa dinâmica mudará. Pela primeira vez, é possível medir objetivamente o impacto climático da atividade legislativa e cobrar dos parlamentares uma postura coerente com os desafios da nossa época. Resta saber se os deputados da 57ª legislatura terão coragem de agir diferente dos seus antecessores “carbônicos”.
Outra continuidade do estudo que estamos desenvolvendo investiga se os deputados mais “carbônicos” têm vínculos diretos com setores econômicos altamente poluentes. Através do mapeamento das trajetórias profissionais dos parlamentares, buscaremos identificar propriedades rurais, participação em empresas do agronegócio ou mineração e vínculos com entidades que defendem esses interesses.
A pesquisa também analisará os discursos desses deputados para entender como constroem suas narrativas sobre meio ambiente, comparando-as com o discurso dos próprios setores econômicos. O objetivo é revelar se existe uma “porta giratória” entre o Congresso e os grandes emissores de gases de efeito estufa, ajudando a explicar por que a agenda climática encontra tanta resistência no Parlamento brasileiro.