No contexto da reforma tributária em curso, destacamos uma reconfiguração proposta para o conceito de templos religiosos na imunidade tributária, que veio a ser previsto no substitutivo do PLP 68/2024[1], aprovado na Câmara de Deputados e encaminhado para o Senado.
O PLP inova no tratamento das imunidades, restringindo um conceito, o de templo religioso:
Art. 9º
2º Para efeitos do disposto no inciso II do caput, considera-se:
I – entidade religiosa e templo de qualquer culto: a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que tenha como objetivos professar a fé religiosa e praticar a religião;
Sem qualquer delonga, diga-se: o conceito de templo religioso não é o de pessoa jurídica de direito privado! Equivoca-se o PLP 68 ao pretender esse reducionismo conceitual.
Uma norma legal que limita o conceito de templo religioso e, portanto, limita o alcance da imunidade tributária, dizendo tratar-se de pessoa jurídica de direito privado, está mergulhada numa estrutura que invisibiliza manifestações diversas de templos religiosos. O estudo tributário merece passar pelas lentes de uma teoria crítica racial para se compreender legitimamente um conceito de templo religioso que alcance terreiros como ambientes religiosos na matriz africana.
O pesquisador Guilherme Martins Nascimento lembra que “a raça deve ser vista como um dos principais indicadores de complexidade das relações sociais, devendo ser considerada para se perceber em que medida elas prejudicam o reconhecimento de terreiros como entidades passíveis de percepção de garantias tributárias”[2].
A restrição que ora se pretende fazer atinge frontalmente o sentido de templo religioso para parte das religiões de matriz africana, que não se restringe a um espaço territorial.
Diga-se de passagem, a tradição jurisprudencial já há tempo adota uma hermenêutica ampliativa do conceito de templo religioso, que está muito mais atrelado ao local do culto do que à configuração da personalidade jurídica da organização religiosa.[3]
O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre o alcance da imunidade tributária religiosa para cemitérios mantidos por organização religiosa, estendendo a eles a concepção de templo. Outra interpretação extensiva adotada foi a tomada para conferir a imunidade tributária religiosa (dos templos) para outros locais de exploração econômica pela entidade religiosa, desde que em conexão com a sua finalidade essencial com a renda revertida para as atividades fins, conferindo maior abrangência ao instituto da imunidade.[4]
Aliás, de uma forma geral o STF adota uma interpretação extensiva para o alcance das imunidades tributárias, de forma a conferir à norma constitucional a “interpretação teleológica do instituto, a emprestar-lhe abrangência maior, com escopo de assegurar à norma supralegal máxima efetividade”[5].
No entanto, muito embora haja uma garantia constitucional que proteja a liberdade religiosa, garantia esta inclusive de natureza tributária, fato é que na práxis administrativa e legislativa infraconstitucionais já é comum surgirem obstáculos diversos para a plena proteção da fé de matriz africana, configurando componentes de uma estrutura de cunho racista.
Já sabemos o quão difícil é para as religiões de matriz africana acessarem a estrutura da imunidade tributária, considerando que há instâncias administrativas que analisam a condição de templos religiosos para conferirem a garantia constitucional. Geralmente, o interessado deve formalizar o pedido ao ente municipal, a partir de exigência de documentação por meio de normativos próprios.
As dificuldades começam por aí, pois as estruturas de pensamento e concepção religiosas são diversas e as estruturas político-administrativas não abrigam a diversidade. Essas situações acabam por provocar disrupturas no processo constitucional, muitas vezes, inclusive, com descaracterização da religião que deveria ser protegida pela norma. É o que diz Nascimento:
Terreiros se automutilam para vestir a máscara branca para o enquadramento como instituições passíveis de reconhecimento institucional (FANON) de modo a garantir direitos previstos no ordenamento jurídico pátrio. Há possibilidade de que esses espaços não se autoidentifiquem como terreiros para fins de registro, mas sim como outros tipos de entidades que também usufruem da garantia constitucional, a exemplo das instituições de assistência social, sem fins lucrativos (GIUMBELLI).[6]
Ao estabelecer a exigência de personalidade jurídica para a definição de templos religiosos, o PLP cria uma barreira desproporcional para as religiões de matriz africana. Essas tradições, já confrontadas por uma burocracia opressora, enfrentariam ainda mais obstáculos para sua regularização. Não só se desrespeita a diversidade de manifestações de fé, mas também se viola diretamente a liberdade religiosa.
A medida perpetua uma histórica desigualdade, marginalizando os terreiros e comprometendo o princípio da igualdade. Essa falta de discussão na Câmara sobre a redução do conceito de templo religioso à personalidade jurídica revela uma desconexão com a realidade dos templos de matriz africana, que seriam colocados em desvantagem significativa caso o PLP seja aprovado no Senado no estado em que se encontra.
Assim, questões importantes como o efeito da intersecção entre raça e religião são ignoradas, aumentando a desigualdade e afastando o texto legislativo de seu objetivo de proteger a pluralidade religiosa.
As normas de imunidade tributária em sua maioria não são normas carentes de regulamentação. São, sim, objeto de interpretação constitucional pelo STF, como se explorou neste texto. Há necessidade de complementação, em alguns casos. Jamais de restrição de seu alcance. Não cabe a uma legislação infraconstitucional reduzir o alcance de uma garantia constitucional. Ainda mais quando essa redução importa em exclusão e discriminação, em reprodução do racismo estrutural, um racismo tributário. A concretização de uma reforma tributária não passa por aí.
[1] PLP 68/2024. Projeto de Lei que institui o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços – CBS e o Imposto Seletivo – IS e dá outras providências. 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2430143 Acesso em 25.07.2024.
[2] NASCIMENTO, Guilherme Martins. A Imunidade Tributária dos Terreiros: um estudo sobre o conceito de “templos de qualquer culto” adotado no sistema jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Brasília, DF: Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2022.
[3] A esse respeito, ver BARRETO, Paulo Ayres. Templo. In: Enciclopédia Jurídica PUC SP. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/272/edicao-1/templo#:~:text=No%20entanto%2C%20em%20outros%20julgados,onde%20propriamente%20ocorre%20o%20culto.
[4] RE 325822, Tribunal Pleno, rel. Min. Ilmar Galvão, rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes, j. 18.12.2002, DJ 14.05.2004.
[5] Ver RE 627815, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 23-05-2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-192 DIVULG 30-09-2013 PUBLIC 01-10-2013 RTJ VOL-00228-01 PP-00678
[6] NASCIMENTO, Guilherme Martins. A Imunidade Tributária dos Terreiros: um estudo sobre o conceito de “templos de qualquer culto” adotado no sistema jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado. Brasília, DF: Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2022. p.89.