O Comitê Gestor na visão de um administrativista curioso

  • Categoria do post:JOTA

A Emenda Constitucional 132/23 e os PLPs 68/2024 e 108/2024, recentemente aprovados pela Câmara dos Deputados, têm a ambiciosa missão mudar a tributação do consumo no país.

A academia e a sociedade brasileira debatem, há décadas, a necessidade de se substituir o sistema de tributação sobre a comercialização de bens e serviços, não por mero exercício intelectual, mas por não se tolerar que a economia do país conviva com um sistema capaz de gerar tantas distorções econômicas.

Portanto, para racionalizar o sistema, “acabar” com a guerra fiscal e conceber um modelo de tributação alinhado com padrões internacionais, o Estado brasileiro substituirá gradativamente o PIS, a Cofins e o IPI pela CBS, e o ISSQN e o ICMS pelo IBS, bem como delegará, neste último caso, a um Comitê Gestor a competência para regulamentar, uniformizar a interpretação e aplicação do imposto, arrecadá-lo, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação, bem como decidir o contencioso administrativo.

O Comitê Gestor parece, então, ser o resultado da constatação prática de que objetivo de racionalizar e funcionalizar da atividade econômica, perseguido pela reforma tributária, permaneceria no papel caso as funções de regulamentar, interpretar e aplicar o imposto permanecessem pulverizadas entre milhares de entes federativos.

Embora o modelo pareça, do ponto de vista abstrato, funcionar bem quando se enxerga a relação entre o Estado e o contribuinte, ainda remanescem importantes dúvidas sobre como o Comitê Gestor funcionará na prática. Afinal, como alertou recentemente o professor José Mauricio Conti, problema de enxergar uma reforma na tributação como predominantemente “tributária” é relegar para segundo plano os impactos e desafios que essas mudanças produzem nas áreas das finanças, da contabilidade e da própria Administração.

Mas concentrando a atenção agora especificamente no objeto do artigo, uma pergunta que tenho visto se repetir, com bastante frequência, nos debates sobre a reforma tributária é: qual é a natureza jurídica do Comitê Gestor?

Por mais que a Emenda tenha explicitamente apontado que a tributação sobre o consumo não estava se deslocando de nível federativo, pois as competências permaneceriam com estados, Distrito Federal e municípios, não está claro, para muitos, a que ente(s) federativo(s) essa estrutura estaria vinculada ou mesmo em que modelo de entidade da administração indireta  deve ser enquadrada essa nova figura administrativa.

De acordo com os PLP 108, o Comitê Gestor deve ser considerado como “entidade pública com caráter técnico e operacional sob regime especial, com sede e foro no Distrito Federal, dotado de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, relativamente à competência compartilhada para administrar o Imposto Sobre Bens e Serviços – IBS”. A novidade está exatamente em concebê-lo como algo diverso do que existia, até então, dentro do Direito Administrativo e na nossa tradição jurídica, no modelo de estrutura administrativa desenhado pelo Decreto-Lei 200/1967.

A discussão sobre o enquadramento da nova entidade, ou melhor, sobre a definição de qual seria a sua natureza jurídica, que perturba parte dos publicistas, pode ser uma boa oportunidade de compartilhar muito brevemente como surgiram as entidades da administração indireta. Talvez esse seja um bom ponto de partida para pensarmos o problema e colocá-lo no devido lugar.

Conta Alexis Toqueville[1] que o Estado unitário e estruturalmente hierarquizado, parecido com o que conhecemos, herdou grande parte de seus institutos, acredite, do Estado absolutista, demonizado pela revolução francesa. A Revolução Francesa, concebida para significar a transposição do ancien regime, manteve na estrutura do Estado institutos de caráter eminentemente autoritário, seja por conveniência, seja mesmo pela necessidade prática de consolidar o Estado politicamente dentro de uma estrutura unitária.

É desse modelo de Estado que surge a Administração composta por órgãos, que se estruturam de maneira vertical e se relaciona com a sociedade em espaços idealmente delimitados pela lei. Ou seja, a necessidade de viabilizar o funcionamento do Estado impulsou, em tese, os revolucionários a dar uma nova roupagem a instrumentos, em tese, incompatíveis com os objetivos declarados da revolução, sem nenhum constrangimento.

Alguns anos mais tarde, principalmente no pós-segunda guerra, o processo de reconstrução do mundo ocidental, aliado à desilusão de parte dos segmentos sociais com a ortodoxia econômica do Estado Liberal, fez com que o poder público assumisse um novo papel no domínio econômico, para desenvolver diretamente setores econômicos estruturais para os quais o mercado não demonstrava possuir apetite ou mesmo capacidade de mobilização de recursos.

Além disso, dentro desse mesmo cenário, o Estado passa também a não mais se destinar apenas à defesa da propriedade e da liberdade, mas também a promover outras dimensões da existência humana, tais como saúde, educação, lazer.

Para essa nova forma de agir, a história nos conta que os gestores públicos foram buscar, na iniciativa privada, soluções para gerenciar as atividades econômicas exploradas em regime de monopólio ou de mercado, ou mesmo a criar estruturas administrativas, para delegar-lhes o exercício de suas funções com maior grau de autonomia. Está-se, aqui, contanto a história das empresas estatais, das autarquias e das fundações (cujo regime jurídico, até o momento, curiosamente permanece nebuloso). A necessidade de intervir no domínio econômico e expandir o seu campo de atuação fez com que o Estado se organizasse de uma nova forma.

Por fim, especificamente no caso brasileiro, nos primeiros anos da Constituição Federal, com a retração do pêndulo que mede a intervenção do Estado na economia, esse modelo de Estado formado por um conjunto numeroso de autarquias, fundações e empresas estatais, das mais variadas naturezas passou a ser questionado, seja pela sua inviabilidade fiscal, seja mesmo por sua duvidosa eficiência.

Surgiu o movimento – alinhado com uma agenda econômica mundial – de questionar a conveniência de se manter o Estado, de maneira direta, atuando por empresas ou entidades de direito público, em determinados segmentos econômicos. Havia ainda, nesse contexto, a necessidade de se criar um ambiente institucional capaz de atrair investimento privado, para setores estratégicos da economia e para os quais o Estado brasileiro, precisando controlar a inflação, não poderia fazer frente.

É nesse mesmo cenário que surgem as agências reguladoras, entidades autárquicas de regime especial que, para cumprir a missão de regular setores estratégicos de maneira técnica e com reduzido risco de captura pelo governo/mercado, precisariam ser dotadas de autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, portando os seus dirigentes de estabilidade.

Apesar de, ao tempo, o modelo ter sido questionado de maneira contundente, por contar com um suposto déficit de legitimidade democrática ou mesmo por ser o modelo incompatível o sistema presidencialista de governo, pode-se afirmar nesse momento que está consolidado do ponto de vista jurídico.

Agora, voltamos à pergunta anterior, sobre a natureza jurídica do Comitê Gestor. Nesse ponto do texto, deixamos claro que a finalidade desse texto é demonstrar que o processo de criação e consolidação de entidades administrativos é dinâmico, assim como o da própria composição institucional do Estado. Na verdade, as entidades que hoje conhecemos e que estão previstas na Constituição Federal passaram por um processo gradativo de consolidação, em que alguém precisou se valer da criatividade para atender a uma necessidade pública, que não poderia ser corretamente endereçada pelo que já existia.

No caso específico do Comitê Gestor, podemos afirmar que se trata de entidade interfederativa, cuja finalidade é tornar o sistema de tributação de consumo racional. Para pôr fim à guerra fiscal, reduzir os custos atrelados a um sistema tributário irracional e se ter o mínimo de segurança de que a mesma operação econômica será interpretada, entendeu-se necessário delegar constitucionalmente a um ente neutro a atribuição de dar-lhe funcionalidade.

As formas administrativas não são um fim em si mesmo. Por mais que se anteveja, sem nenhuma surpresa, que o Supremo Tribunal Federal deverá dar a última palavra sobre o assunto, não se vê qualquer problema jurídico em o constituinte, com base na noção de federalismo cooperativo, criar uma estrutura organizacional nova, interfederativa, dotada de independência, para atuar em campos da tributação em que a ação fiscalizatória da Administração deva ser uniformizada.

Ainda remanescem uma série de lacunas sobre como funcionará o controle externo dessa entidade, a quem pertencerá o seu orçamento, ou mesmo se o modelo desenhado efetivamente cumprirá essas finalidades. Mas isso não torna essa estrutura inconstitucional e é preciso que quem se dedica ao assunto passe a enfrentar cada problema, com espírito público e vontade efetiva de fazê-lo funcionar.

Agora, a quem perguntar, qual é a natureza jurídica do Comitê Gestor, parece-me adequado responder: é algo novo, e está tudo bem.

[1] L’ancien Regime Et La Revolution, Libraires-Editeurs, 1856.