Em 2022, durante as celebrações de seus 25 anos, a Anatel reconheceu publicamente que a sua missão original de impulsionar o acesso aos serviços de telecomunicações no Brasil estava praticamente cumprida. A partir de então, voltou-se para um novo objetivo: liderar a agenda regulatória do ecossistema digital no país.
A ambição da agência é louvável. Em mais de duas décadas de atuação, a Anatel se firmou como uma agência reguladora com alto nível de capacitação de seus servidores, um ferramental regulatório robusto, desenvolvido a partir de uma abordagem de regulação responsiva, e preparada para lidar com temas complexos, em um setor com ondas de disrupção tecnológica cada vez mais curtas.
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Como símbolo dessa aspiração, a agência firmou um termo de cooperação com a Universidade de Brasília para avaliar os desafios regulatórios da economia digital. O estudo, divulgado em 2024, foi direto ao ponto: a Anatel não possui, atualmente, competência para exercer poder regulatório ou moderador sobre o ambiente digital, tampouco para impor medidas constritivas ou repressivas a usuários finais de serviços de telecomunicações. Avanços regulatórios nessa direção dependem de alteração legislativa.[1]
De fato, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) distingue claramente os serviços de telecomunicações, sujeitos à disciplina legal e à competência regulamentar da Anatel, dos Serviços de Valor Adicionado (SVAs), categoria que inclui as aplicações de Internet. Tais serviços, por essência, fazem uso das telecomunicações apenas como suporte, sem com elas se confundir. Os provedores de SVA são, por expressa dicção legal, usuários dos serviços de telecomunicações que lhes dão suporte, com direitos e deveres inerentes a essa condição.
A fronteira que separa telecomunicações e aplicações de internet é definida por lei. Cabe à Anatel, como ente regulador das telecomunicações, disciplinar estas atividades enquanto serviços de titularidade estatal, explorados pela iniciativa privada em regime de concessão, permissão ou autorização. No caso das aplicações de Internet, a competência da agência é restrita a assegurar que seus provedores possam utilizar as telecomunicações (redes e serviços) para atender seus usuários, prestando seus serviços em regime de livre mercado.
No afã de seu projeto de protagonismo, a agência decidiu construir um castelo de cartas, jogando por terra a boa prática regulatória que a levou até aqui, optando por buscar, a partir de caminhos interpretativos, espaços para redesenhar as suas competências para avançar sobre o ecossistema digital, subvertendo as linhas traçadas pela LGT.
O esforço concentrado para atribuir às plataformas de marketplace a responsabilidade objetiva sobre todos os produtos de telecomunicações que nelas são anunciados é a iniciativa regulatória mais emblemática desse movimento, em que a agência se “autoatribui” a autoridade para fiscalizar e sancionar aplicações de internet. Outras iniciativas seguem o mesmo caminho.[2]
Em agosto de 2021, atendendo aos anseios da agência, a Procuradoria Federal Especializada junto à Anatel reviu posicionamentos anteriores e passou a opinar pela possibilidade de responsabilização administrativa de plataformas de marketplace, por supostamente “participarem ativa e decisivamente da comercialização de produtos de telecomunicações não homologados”.[3]
A manobra interpretativa fundamentou-se essencialmente em uma combinação de dois fundamentos: (1) o entendimento de que sua competência para certificar produtos que se conectam às redes de telecomunicações e fiscalizar os equipamentos e componentes de comunicação deve ser lida de forma abrangente, para abarcar a fiscalização de atos de comércio, assim entendidos como a publicidade, a produção, a estocagem e a venda de produtos de telecomunicações em sentido amplo, inclusive por meio da internet; e (2) a existência de modelos regulatórios e precedentes estrangeiros envolvendo plataformas de marketplace, que atribuem responsabilidade solidária e objetiva a esses agentes econômicos com relação à venda de produtos por meio de suas aplicações.
Entretanto, da mesma forma que a LGT não dá competência à Anatel para regular a atividade econômica realizada por SVAs (i.e., disciplinar como essas atividades devem ser executadas no país), a lei também não dá – e nem de longe teve essa pretensão – competências à agência para fiscalizar atos de comércio de produtos de telecomunicações, em ambiente físico ou digital.
Da competência para certificar equipamentos e fiscalizar o emprego ou a habilitação desses produtos nas redes de telecomunicações não se extrai uma prerrogativa para que a Anatel atue como fiscal de comércio, fechando estabelecimentos, físicos ou virtuais, quando entender que há uma venda (ou uma participação na venda) de produtos em desconformidade.
Além de frontalmente contrariar a LGT, a iniciativa da Anatel viola também a Lei da Liberdade Econômica, a qual determina a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício da atividade econômica, bem como que a administração pública deve se abster de adotar medidas que impeçam ou limitem modelos de negócio legalmente permitidos.
É justamente disso que se trata, pois a interpretação da Anatel subverte a estrutura normativa da internet no Brasil, com relação à responsabilidade dos marketplaces por atos praticados pelos vendedores (usuários) que utilizam as suas plataformas. Trata-se de matéria regulamentada pelo Marco Civil da Internet (MCI) e que é objeto de jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça.[4]
Com efeito, o artigo 19 do MCI, ao buscar equilíbrio entre responsabilidade dos provedores de aplicações de Internet e combate a ilícitos, estabeleceu como regra a isenção de responsabilidade por conteúdo de terceiros, salvo em casos de descumprimento de ordem judicial específica ou nas demais hipóteses previstas em lei. Essa regra legal, com aplicação reiterada pelos tribunais superiores, evidentemente, não pode ser afastada por meio de exercício interpretativo, em âmbito regulamentar.
Além da falta de amparo legal da iniciativa da Anatel, também vale ressaltar que o momento não poderia ser mais inoportuno, eis que os contornos da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet ainda estão sendo apreciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A suposta maioria entre ministros do STF que se aventa na imprensa ainda não está clara e há divergências que precisam ser pacificadas pela Corte sobre os termos que vigorarão. Dessa forma, em um ambiente já permeado por incertezas, a Anatel atua de maneira deliberada para criar ainda mais insegurança jurídica em relação a uma atividade econômica (marketplaces) legalmente permitida.
Para conferir verniz de legalidade aos seus atos, a Agência passou a editar normas que estabelecem procedimentos para fiscalização e aplicação de sanções no e-commerce, para, com base nelas, aplicar multas que chegam à casa de milhões de reais, em razão de anúncios de produtos de telecomunicações não homologados, veiculados por terceiros em plataformas de marketplace.
E nessa clara inversão de pirâmide normativa, em que o regulador cria as suas competências e ignora as opções legislativas e a jurisprudência predominante dos tribunais, o estopim veio com a edição de uma medida cautelar,[5] por meio da qual a Anatel exigiu que marketplaces implementem medidas de censura/controle prévio sobre todos os aparelhos celulares anunciados em suas plataformas, sob pena de multas diárias de até R$ 7,2 milhões, remoção de todos os anúncios de produtos emissores de radiofrequência e até o bloqueio integral da plataforma, sem necessidade de ordem judicial – “não importa[ndo] o que tem lá dentro”.[6]
Tal determinação veio acompanhada de um amplo esforço midiático, com entrevistas à imprensa e ameaças em viva-voz de novas multas e determinações de bloqueios “para desligar gigantes do ecommerce”,[7] revelando uma preocupação maior com o protagonismo da Agência do que com o devido processo legal. É curioso que, nos seus mais de 25 anos de existência, a Anatel raramente ameaçou “desligar” as gigantes de telecomunicações.
Em um aparente paradoxo, a tentativa de empoderamento da Anatel para atuar contra as plataformas de marketplace se baseia na transferência de responsabilidades. Isto é, ao assumir, sem embasamento legal, que possui poder de polícia para fiscalizar atos de comércio na Internet, a Anatel reconhece que não tem condições para agir em face dos reais infratores, i.e., aqueles que efetivamente colocam tais produtos no comércio, delegando a um agente privado – o marketplace –, a função de fiscalização regulatória que alega lhe competir.
Essa tentativa de privatizar o poder de polícia, além de juridicamente insustentável, evidencia uma fragilidade da Agência para cumprir o seu almejado papel de autoridade do ambiente digital com os meios que possui.
Outro ponto de fragilidade nesse projeto de poder para o século 21 é o abandono das boas práticas regulatórias que elevaram a Anatel ao seu patamar atual. Em sua incursão contra as plataformas de marketplace, a agência descartou a preparação de Análises de Impacto Regulatório, abandonou princípios de regulação responsiva (embora diga publicamente o contrário) e pautou-se exclusivamente por medidas de comando e controle, com mensagens claras de que não haveria espaço para diálogos ou para alternativas que se amoldassem à realidade de cada negócio envolvido.
Em nenhum momento a Anatel se preocupou, por exemplo, em refletir sobre a viabilidade técnica do cumprimento das medidas por ela determinadas em razão de problemas estruturais do seu sistema de homologação, que mantém base de dados sabidamente incompleta e imprecisa. O próprio processo de homologação, inclusive, é apontado por entidades estrangeiras como falho, representando uma barreira técnica ao comércio internacional.[8] Ora, para quem quer regular a inovação, o mínimo que se espera é que esteja aberta a ela.
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Nessa incursão, a Anatel acabou saindo menor. Em decisão recente, o TRF da 3ª Região reconheceu a ilegalidade das medidas adotadas pela agência, afirmando que a Anatel não possui competência para fiscalizar, multar ou bloquear marketplaces – especialmente por se tratar de plataformas de intermediação, e não de produtoras de conteúdo.[9] O julgamento reforça que, na qualidade de SVAs, os marketplaces estão fora do alcance da agência.
Ao tentar demonstrar força, a Anatel revelou fragilidade. Ao transferir responsabilidades, esvaziou sua autoridade. Ao se fechar para o diálogo, ameaçou novos modelos de negócios. Com isso, compromete três pilares fundamentais de qualquer regulação moderna: a legalidade, a responsividade e a segurança jurídica.
De tudo, fica uma lição incontornável: se quiser exercer o papel relevante que lhe cabe na era digital, a Anatel terá que reconstruir sua atuação com base na lei, na técnica e na regulação inteligente. Um castelo de estrutura firme. Medidas impostas sem diálogo institucional ou respaldo legal ou técnico não apenas colocam a agência na contramão de tudo o que fez, mas também corroem a confiança dos agentes econômicos em ver o Brasil como destino seguro para a inovação digital.
[1] RAMOS, Murilo César et al. Estudo sobre poder social dos serviços digitais: versão final. Brasília, 2024. e-book. (1 recurso online 465p). Disponível em: https://www.anatel.gov.br/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=44902.
[2] Dentre as quais o debate sobre um regulamento sobre deveres de provedores de SVAs com relação ao uso de serviços de telecomunicações.
[3] Disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEP-wqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO4t0UuV0d7ERjywGrRjfzWiwaEv5qDiucqzOSkmGuYZGlA6a-B118QiuybPF9Bdki34wmGMyB6GhHGdoEUeFV5_.
[4] E.g., REsp 2.088.236/PR, AgInt no AREsp 2.314.086/RS, REsp 1.763.517/SP, AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1.862.739/RJ, REsp 1.880.344/SP, REsp 1.763.517/SP, AREsp 2.391.244/RJ, REsp 2.023.336/GO, REsp 2.083.178/SP, REsp 1.890.786/DF.
[5] Despacho Decisório n.º 5.657/2024/ORCN/SOR, publicado no DOU de 21/06/2024, Seção 1, página 18, retificado pelo Despacho Decisório n.º 5.686/2024/ORCN/SOR, publicado no DOU de 24/06/2024, Seção 1, página 19.
[6] Disponível em: https://www.mobiletime.com.br/noticias/19/05/2025/anatel-amazon-meli/.
[7] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2025/05/anatel-aguarda-justica-para-desligar-gigantes-do-ecommerce.shtml.
[8] Disponível em: https://www.uschamber.com/international/u-s-chamber-comments-re-reviewing-and-identifying-unfair-trade-practices-and-initiating-all-necessary-actions-to-investigate-harm-from-non-reciprocal-trade-arrangements-federal-register-docket-number-ustr-2025-0001.
[9] Disponível em: https://www.jota.info/justica/amazon-vence-no-trf3-disputa-contra-anatel-sobre-celulares-piratas.