O caso do metanol e a capacidade estatal da governança do risco

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Períodos de crises sanitárias revelam fraturas, fortalezas e disputas na engrenagem regulatória. Em 2014, quando a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça soou o alerta para o recolhimento de leites das marcas Parmalat e Líder, a medida evidenciou como falhas na cadeia produtiva exigem coordenação entre vigilância, defesa do consumidor, segurança alimentar e comunicação de risco.

À época, houve o recolhimento de cerca de 300 mil caixas de leite colocadas no mercado de consumo. A lição permanece atual: problemas que começam na fábrica, no transporte ou no comércio testam, em tempo real, a capacidade do Estado de diagnosticar, agir e explicar.

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Crises como esta expõem a centralidade da governança do risco na atuação regulatória. No plano preventivo, envolve mapear perigos prioritários, orientar a fiscalização por risco, exigir rastreabilidade e padronizar controles de qualidade e informação ao longo da cadeia. No plano de resposta, requer detecção precoce, protocolos claros de emergência, comunicação de risco simples e tempestiva, retirada célere de produtos e coordenação interinstitucional.

Um dos casos emblemáticos no setor de vigilância sanitária é Jack in the Box, ocorrido no Estados Unidos, em 1993. No precedente, houve um surto da bactéria E. coli decorrentes de falhas de cozimento e controle na rede de lanchonetes. Ele é considerado um divisor de águas: impulsionou padrões mais rigorosos, revisão de procedimentos e uma cultura regulatória que combina prevenção com resposta rápida e transparente.

O surto atual de intoxicação por metanol após consumo de bebidas alcoólicas no Brasil demanda essa arquitetura: capacidade de antecipar e reduzir a exposição em cadeias informais e, quando o dano emerge, agir com celeridade e eficiência para proteger vidas e restaurar confiança.

No último domingo (5/10), o Ministério da Saúde consolidou 225 registros por intoxicação de metanol no país, sendo 6 confirmados e 209 em investigação, com concentração em São Paulo. Há 15 notificações de óbito (2 confirmadas em SP e 13 em apuração). Os dados são informados pelos estados e consolidados pelo Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS). Esses números indicam o avanço e aumento nos casos registrados, o que traz à tona a necessidade de coordenação nacional.

Por que essa articulação é importante?  A título de ilustração, no caso do metanol, o tratamento específico exige antídoto (fomepizol) e, na sua ausência, protocolos com etanol farmacêutico, além de retaguarda laboratorial para confirmação. A Anvisa acionou medidas extraordinárias, inclusive chamamento internacional e autorização excepcional de importação de frascos de fomepizol. O Ministério da Saúde, por sua vez, realizou pedido à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), para doação de tratamentos, além de ter firmado parceria com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).

Nesta segunda-feira (6/10), a resposta institucional avançou com e edição da Portaria GM/MS 8.327 pelo Ministério da Saúde. A norma instituiu a Sala de Situação Nacional para monitoramento e resposta coordenada ao evento, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que conta com a participação de 13 entidades. Salas de situação tiram a gestão de crise do improviso, dão lastro decisório e encurtam o caminho entre informação e ação. A portaria confere base formal para articulação federativa e intersetorial na resolução da crise.

Esse arranjo é decisivo porque o caso revela a complexidade de lidar com cadeias historicamente marcadas por falsificação: em bebidas alcoólicas, como já ocorre com cigarros, diferenças tributárias, circuitos paralelos e baixa percepção de risco estimulam a circulação de produtos adulterados. No caso do metanol, um vício de qualidade pode, num intervalo de horas, resultar em cegueira ou morte.

Reduzir o problema ao penal é insuficiente. A resposta regulatória mais efetiva combina fiscalização inteligente em campo (com foco em pontos críticos e rastreabilidade de lotes), interoperabilidade de dados entre vigilância, laboratórios e polícia judiciária e comunicação de risco segmentada, repetitiva e verificável.

Do ponto de vista do Direito Administrativo, estamos diante de uma prova viva da “processualização” da regulação[1]: procedimentos claros, competências definidas e instrumentos de coordenação que conferem previsibilidade à resposta estatal. A portaria da sala de situação do Ministério da Saúde cumpre esse papel; a Rede CIEVS oferece capilaridade; os atos da Anvisa mostram o uso de ferramentas excepcionais, proporcionais ao risco.

Assim, para que a atuação processualizada produza resultados para contenção de crises no gerenciamento do risco, três pontos devem ser observados. Primeiro, é necessário definir de forma clara as competências das entidades envolvidas. Segundo, deve ser facultado a tais entidades o uso integral do cardápio regulatório como caixa de ferramentas, indo além do ato normativo em sentido estrito. Terceiro, transparência ativa, com dados abertos que permitam acompanhar decisões e resultados. Sem papel definido, a coordenação se dilui; sem instrumentos variados, a resposta fica frágil; sem transparência, perde-se confiança institucional.

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O caso do metanol deve ser tratado como oportunidade de aprendizado institucional contínuo: coletar e qualificar evidências em tempo real, transformá-las em rotinas, protocolos e métricas verificáveis, e investir, de forma permanente, na capacidade estatal.

Regulação sanitária eficaz, do ponto de vista de capacidades, não se improvisa na crise: ela se constrói antes, com monitoramento e avaliação de desempenho; se ajusta durante, com decisões fundamentadas em dados e transparência; e se consolida depois, com revisão do que funcionou e do que precisa mudar.


[1] A processualização da regulação foi tema da tese de doutorado da autora na Universidade de São Paulo (USP), defendida em fevereiro de 2025. Informações disponíveis em: https://prpg.usp.br/pt-br/press-release-teses-e-dissertacoes/10625-a-processualizacao-da-regulacao-no-brasil.