A juíza da 32ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte proferiu, no dia 30 de outubro, sentença de improcedência inédita n’o Judiciário brasileiro sobre suposta manipulação de jurisprudência. Em junho deste ano, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) alegando que a empresa Uber manipularia o resultado das decisões judiciais do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3) por meio da celebração de acordos processuais embasada pelo uso de tecnologia, pelo que requereu a condenação da empresa ao pagamento de danos morais coletivos no montante igual a 3% do faturamento da Uber em 2022.
A Uber defendeu que não faz uso de nenhuma ferramenta de jurimetria, algoritmo ou inteligência artificial para a tomada de decisão quanto à celebração de acordos judiciais. Enfatizou que, como qualquer litigante, equaciona aspectos financeiros de gestão da sua carteira de processos judiciais trabalhistas e os riscos inerentes à qualquer disputa judicial, buscando reduzir custos e o número de casos ativos por meio da celebração de acordos processuais. A empresa apontou ainda a existência de expressivo número de acordos celebrados em turmas julgadoras com posição reconhecidamente favorável à empresa e a existência de decisões judiciais da segunda instância do Regional mineiro em seu desfavor, bem como do próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST), o que demonstraria inexistência de manipulação da jurisprudência.
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Segundo o MPT, no entanto, a Uber recorrentemente avaliaria, por meio de jurimetria, o entendimento de cada julgador da segunda instância do TRT-3 quanto ao tema do vínculo de emprego entre motoristas e a plataforma e buscaria celebrar acordos quando identificado que a turma julgadora apresentava posicionamento desfavorável à tese da empresa. A prática, de acordo com o MPT, criaria a impressão de que a maior parte das decisões judiciais da segunda instância reconhece a inexistência de vínculo de emprego, estimulando que outros julgadores também emitam decisões favoráveis à empresa, o que violaria princípios constitucionais e processuais como o do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa e da cooperação.
A resposta da juíza Sandra Maria Generoso Thomaz Leidecker à demanda, é de que não há violação qualquer a ser reparada e que a prática de buscar acordos judiciais quando se espera um resultado negativo “não pode ser tida como inovadora, nem mesmo distante daquela que outros grandes litigantes, há muito, também adotam. Tal prática é realizada, desde os primórdios, pelos advogados diligentes, a fim de orientar os clientes“.
Qualquer profissional que milita na Justiça do Trabalho está acostumado a ser questionado, já no início das audiências, se as partes desejam apresentar uma proposta de acordo. Não é diferente no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, que também contam com Centros Judiciários de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Cejusc), para onde os processos são remetidos, muitas vezes, sem que haja sequer requerimento das partes, para que haja mais uma tentativa de conciliação. Ou seja, a própria Justiça do Trabalho estimula acordos em qualquer fase do processo judicial, inclusive nos casos que já tramitam no TST, que no início deste ano criou um CEJUSC no âmbito da Corte. Fica claro pelo arcabouço legal trabalhista (especialmente pelas regras dispostas nos artigos 831, 846 e 850 da CLT) e pela configuração do Poder Judiciário – sobretudo pela Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Resolução CNJ 125/2010 – , que os magistrados devem facilitar a autocomposição nos processos e as partes também têm a prerrogativa de propor um acordo a qualquer momento. Inclusive o próprio MPT assinou com o TST, neste mês, acordo de cooperação técnica para estimular a conciliação1.
Evidentemente, qualquer litigante quer evitar ser vencido no processo judicial, por isso a conciliação aparece como um meio ao menos de mitigação desse risco. E a lei não traz qualquer restrição ao momento da celebração dos acordos, que por vezes acontecem já em sede de execução. É por isso que não causa qualquer estranhamento – e nunca causou – o grande volume de processos nos CEJUSCs de segundo grau. Veja-se, por exemplo, que os CEJUSCs de 2º Grau da Justiça do Trabalho receberam 26.063 processos apenas em 20222.
Assim, se o CNJ, o TST e o próprio MPT estimulam as resoluções consensuais de disputas em qualquer momento do processo judicial, não há razões e tampouco argumentos plausíveis para se questionar os acordos homologados pela Justiça do Trabalho nos casos que envolvem as plataformas de intermediação como a Uber.
Ao litigar contra o que defende a própria instituição, a Justiça do Trabalho e o Poder Judiciário como um todo, o MPT parece estar mais preocupado em consolidar a sua tese de existência de vínculo empregatício entre motoristas e as plataformas do que defender os nobres princípios processuais e constitucionais. Até mesmo porque, se houvesse as alegadas violações, não deveria o MPT pedir que a conduta lesiva à ordem jurídica fosse cessada? Mesmo alegando que a empresa Uber busca criar ambiente artificial de jurisprudência favorável à tese de inexistência de vínculo, o MPT não requereu na ACP que a Uber se abstivesse de praticar qualquer conduta. Apresentou-se tão somente pedido de indenização, em absoluto descompasso com as alegações trazidas nos autos.
Ao se colocar de lado qualquer ideologia jurídica acerca da natureza da relação entre a Uber e os motoristas, resta como verdade que o trabalho de analisar caso a caso e indicar ao cliente a melhor estratégia para cada momento processual é um dever do advogado, como preconiza o artigo 11 do Código de Ética e Disciplina da OAB, que assim dispõe: “O advogado, no exercício do mandato, atua como patrono da parte, cumprindolhe, por isso, imprimir à causa orientação que lhe pareça mais adequada, sem se subordinar a intenções contrárias do cliente, mas, antes, procurando esclarecê-lo quanto à estratégia traçada”. Logo, não poderia a empresa ser punida exatamente pelo que lhe é exigido enquanto demandante, como bem assevera a sentença: “Os operadores do direito não só podem, como devem, avaliar as chances de êxito para, assim, sugerir a melhor estratégia. Tanto as partes quanto o julgador, conhecendo a jurisprudência, são racionalmente estimulados à composição do conflito”.
Para o leitor não familiarizado com o tema, a jurimetria nada mais é do que o uso de dados estatísticos aplicados ao Direito. É dizer, atualmente existem programas de computador (softwares) que por meio da análise automatizada de dados públicos tentam prever a probabilidade de êxito em demandas judiciais, os valores arbitrados caso a parte não seja vitoriosa na demanda, entre outras análises probabilísticas. Muitos escritórios utilizam esses softwares para auxiliar no trabalho de aconselhamento jurídico, bem como o fazem muitas empresas como apoio à gestão de suas respectivas carteiras de processos judiciais.
As perguntas que realmente precisam ser feitas são: que infração há contra o contraditório, o devido processo legal e ao resultado útil do processo se os advogados das partes traçam estratégias processuais com informações públicas e conduzem eles mesmos pesquisa nos repositórios dos Tribunais, a fim de identificarem tendências de posicionamento dos julgadores e buscarem a autocomposição? Ou mesmo se utilizam ferramentas tecnológicas que fazem essas pesquisas de modo automatizado?
No nosso entender, poder-se-ia, quando muito, dizer de uma situação de disparidade processual das partes, já que o uso de jurimetria tende a oferecer previsões probabilísticas mais precisas do resultado do processo do que o julgamento feito à partir de análises não sistematizadas da jurisprudência de um Tribunal ou julgador particular. No entanto, pensamos que não se sustenta nenhuma ideia de assimetria material ou processual porque os dados estatísticos expressam apenas uma expectativa, como bem destaca a decisão exarada, mas sempre haverá para ambas as partes o risco processual “a depender da convicção do julgador de primeira instância ou da Turma para a qual o processo é distribuído. Trata – se de mero fruto da interpretação de quem julga, dado que não constitui ciência exata”.
Além de reafirmar a natureza conciliatória da Justiça do Trabalho em qualquer grau de jurisdição, ainda que as partes se valham de dados estatísticos para a tomada de decisão, a sentença do processo 0010531-94.2023.5.03.0111 assenta outras importantes premissas.
A mais relevante, no nosso sentir, diz do papel dos julgadores. Uma turma de desembargadores ou um juiz, como destaca a decisão, não é “mero e pacífico espectador da relação processual, desprovido de qualquer dever como atuante, promotor e garantidor da justiça“. Ou seja, todos os acordos celebrados passam pelo crivo do Judiciário, que deve examinar as condições de validade do acordo processual e corrigir eventuais problemas identificados. O fato de haver uma proposta de acordo de uma das partes não obriga o ex adverso a aceitá-la ou os julgadores a homologá-la. E pelo que se apurou nos autos da ACP, todos os acordos da Uber foram ratificados pelo Judiciário sem que qualquer vício formal ou material tenha sido apontado.
Outrossim, a decisão relembra bem qual o papel dos precedentes judiciais dentro da ordem jurídica brasileira. Ora, uma vez que o Brasil segue o modelo de civil law, em detrimento do common law, os precedentes judiciais não vinculam outros julgadores. O fato de um juiz ou turma, mesmo do próprio TST, entender pela existência ou inexistência de vínculo trabalhista entre a Uber e os motoristas, não torna obrigatória para outros julgadores a adoção da mesma ratio decidendi e não implica que casos semelhantes tenham o mesmo desfecho.
A decisão parece-nos salutar, ainda, por reafirmar que o processo não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de pacificação social que tem como objetivo principal “o acesso à Justiça, o que equivale, assim, à obtenção de resultados justos, a tempo e modo”. Dessa forma, a conciliação, em qualquer grau de jurisdição, é uma vertente do acesso à justiça, pois propicia a resolução do conflito de forma mais célere, haja vista que as partes ainda poderiam esperar pelo julgamento de recurso nos tribunais regionais e recorrer às instâncias superiores, além de todos os incidentes possíveis da fase de execução do processo. É bom lembrar que as partes sempre estão representadas por advogados que, presume-se, estão a avaliar a conveniência e licitude dos acordos, nos termos de suas obrigações instituídas pelo Código de Ética da OAB.
Como recentemente afirmou o juiz do trabalho Otavio Torres Calvet3, não deve a magistratura intervir no interesse do jurisdicionado para impedir o fim do litígio. Aqueles que desejam continuar a discussão sobre a existência de vínculo de emprego com as plataformas continuam tendo assegurado o direito de não celebrarem acordo, apresentando suas demandas às instâncias superiores do Poder Judiciário voluntariamente.
Finalmente, a decisão nos parece muito importante também ao afirmar que o Judiciário não vai ficar à margem das evoluções tecnológicas – ao que acrescentamos que ele não deveria ficar afastado das soluções que podem trazer mais eficiência e celeridade para a prestação jurisdicional, como com o uso da jurimetria. A sentença destaca que o próprio MPT fez uso de jurimetria para ajuizar a ação civil pública, ao compilar dados estatísticos que supostamente demonstrariam a manipulação. Também uma leitura do último Relatório Geral da Justiça do Trabalho4 permite-nos pressupor que a tecnologia e os dados estatísticos vêm sendo utilizados pelo Judiciário para prestar contas aos jurisdicionados, para compreender melhor sua própria realidade, e, decerto, alocar com mais eficiência seus recursos financeiros e humanos, por exemplo.
A sentença da ACP 0010531-94.2023.5.03.0111 parece-nos, assim, transcender ao caso particular e assentar marcos relevantes para o uso da tecnologia aplicada ao Direito e à segurança jurídica dos litigantes, ao concluir que: i) não existe restrição legal quanto ao momento processual da celebração de acordos, ii) dentro do civil law os precedentes não têm efeito vinculante e iii) o uso de dados para a decisão de propor um acordo sempre aconteceu, com maior ou menor refinamento das técnicas e ferramentas empregadas para tal finalidade e iv) traçar estratégias para os processos judiciais é o esperado de qualquer parte diligente. Embora haja certa obviedade em dizer que não há ilicitude em celebrar acordos judiciais após ponderações dos riscos a que estão sujeitos todos os litigantes, especialmente para aqueles que recorrem à Justiça do Trabalho, às vezes o óbvio precisa ser dito e reafirmado para que se cumpram os propósitos da própria Justiça e do devido processo legal.
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1 https://www.conjur.com.br/2021-mai-04/trabalho-contemporaneo-recusa-homologacao-acordo-formacao-jurisprudencia
2 https://mpt.mp.br/pgt/noticias/acordo-entre-mpt-e-tst-estimula-conciliacao-para-solucao-de-processos
3 https://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/relatorio-geral
4 https://www.tst.jus.br/documents/18640430/24374464/RGJT.pdf/f65f082d-4765-50bf-3675-e6f352d7b500?t=1688126789237