O candidato “C” está concorrendo pela primeira vez na eleição de 2024 à prefeitura de um município. Antes nunca tivera qualquer interesse pela vida pública. Certo dia, recebe a visita do empresário “E” em seu escritório, dono de uma grande empreiteira.
“Se o senhor prometer apresentar o Projeto de Lei X à Câmara caso seja eleito, contribuo agora para sua campanha com R$ 100 mil em espécie”, propõe o empresário. O candidato aceita a oferta, sua campanha prossegue, ele vence a eleição, toma posse, apresenta o projeto à Câmara Municipal e este é aprovado, em benefício direto da empreiteira que o apoiou.
Ao aceitar a vantagem indevida, o então candidato cometeu o crime de corrupção passiva, segundo o nosso Código Penal? A resposta intuitiva seria sim, mas a discussão é mais complicada do que parece.
Nosso ponto de partida é o artigo 317 do Código Penal, que define o crime de corrupção passiva e incrimina a conduta de (i) “aceitar a promessa de uma vantagem indevida”, (ii) “em decorrência de uma função pública” e (iii) “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”.
Cada um dos trechos do artigo 317 poderia ser dissecado e render uma pesquisa por si só (por exemplo, o que é uma “vantagem indevida”?). Mas nossa atenção está nos pontos (ii) e (iii). O que eles significam, na prática?
Se a vantagem indevida, para ser caracterizada como tal, deve ser aceita em função de um cargo público, só quem tem um cargo público pode cometer um crime de corrupção passiva. É essa conclusão lógica que faz da corrupção passiva aquilo que a literatura chama de crime especial ou próprio, algo que nem todo cidadão pode realizar, mas apenas quem possua uma caraterística singular. No caso, essa característica é exercer “cargo, emprego ou função pública”, como define o artigo 327 do Código Penal.
Ao mesmo tempo que o Código Penal exige esse atributo singular do corrompido, contudo, ele o relativiza em certos casos. E é justamente na terceira parte do artigo, quando diz “ainda que fora da função ou antes de assumi-la”, que nasce o nosso problema.
Concretamente: um simples candidato, que ainda não exerce ou assumiu a função pública, já pode ser acusado de corrupção passiva?
Parece que não.
Para autores como Alaor Leite e Adriano Teixeira, deve existir uma relação “entre vantagem e a posse ou titularidade do cargo ou da função [pública]”.[1] Essa relação de que falam Leite e Teixeira, ou “conexão (…) com os atos e perceptiva de determinado cargo ou função pública”, segundo Juliano Breda, deve ser “prévia, clara e certa”[2].
Logo, como defendeu Ludmilla Bello em monografia de 2021 sobre o tema, a expressão “antes de assumi-la” do art. 317 do CP se aproximaria mais da hipótese, por exemplo, do candidato já aprovado em concurso de magistratura que, antes da alocação na comarca, recebe vantagem indevida, ou do candidato a cargo do executivo já eleito, isto é, quando já existe um “grau de certeza da assunção da função pública”. [3] Afinal, como a autora conclui, a corrupção passiva só pode ser praticada por funcionário público ou por quem “certamente o será (…) não se aplica a quem simplesmente deseja ser”[4].
O Supremo Tribunal Federal (STF) parece ter se inclinado à posição similar na Ação Penal 003/DF ao afastar o crime de corrupção passiva da então candidata Gleisi Hoffmann por ausência da “perspectiva da prática (…) de algum ato inerente a seu futuro ofício parlamentar”.
Essa interpretação se prende a uma leitura rigorosa do que a lei define como corrupção. Segundo a noção clássica, o crime se consuma no ato do acordo entre corruptor e corrompido – e não, por exemplo, na entrega da mala de dinheiro ou na prática de um ato de ofício, o que pode ocorrer apenas bem adiante. Ou seja: é no momento exato do aperto de mãos que devem estar reunidas todas as características elementares do crime especial. Dentre elas, o enquadramento do autor como funcionário público.
De fato, soa estranho deslocar o momento em que a corrupção se consuma e condicioná-la à eleição, um evento futuro e incerto. Consideremos o exemplo de uma candidata à vereadora em Sorocaba que em 2020 recebeu um total de zero votos – nem ela votou em si mesma. Ela nunca foi acusada de nada, mas, apenas a título de exemplo, vamos imaginar: se tivesse aceitado uma vantagem indevida durante a campanha (o que não aconteceu, fique claro), poderia ela sequer ameaçar a integridade da esfera pública[5], se jamais veio ou poderia vir a integrá-la?
Na Alemanha não há previsão legal similar que amplie o campo de qualquer das modalidades de corrupção para um momento anterior ao cargo (§ 331 e § 332 do Código Penal alemão, “Vorteilsannahme” e “Bestechlichkeit”). Uma decisão recente de 2021 do Bundesgerichtshof (o BGH, tribunal correspondente ao nosso STJ) considerou que um candidato até pode ser corrompido, mas apenas se no momento do recebimento da vantagem indevida já era funcionário público no mesmo órgão ou entidade do novo cargo para o qual concorre (6 StR 119/21).
Hipótese similar seria, por exemplo, a do deputado que é candidato a um cargo novo, como o de senador, e aufere uma vantagem indevida não em razão do seu cargo presente, mas sim da possibilidade de ocupar o cargo futuro. Ele já era funcionário público no momento da corrupção, mas os atos mercadejados pertenceriam ao “plexo de atribuições”[6] de um cargo ainda não ocupado por ele.
Na Áustria, por outro lado, foi preciso uma reforma legislativa para ampliar o combate ao “veneno da democracia”, nas palavras da ministra da Justiça austríaca, Alma Zadić. O país incluiu expressamente no seu Código Penal em 2023 a figura da corrupção do “candidato a um cargo/posto público” (…“Kandidat für ein Amt”) (§ 304, 1a, do Código Penal austríaco, “Bestechlichkeit”).
Do jeito que está no Brasil, a proibição do art. 317 do nosso Código Penal não se dirige a todo e qualquer cidadão. Do contrário, não se estaria combatendo a perversão do público pelo privado[7], mas do privado pelo privado. Um crime comum.
Mas isso não significa que candidatos estão livres para receber propina, financiar a campanha com dinheiro não declarado ou vender atos de ofício futuros em benefício de particulares – afinal, quando a vantagem indevida corresponde ao financiamento da campanha em si, a própria gênese do cargo parece maculada. Significa, isso sim, que a promessa de contraprestação da corrupção deve ser crível ou ter potencial concreto de ser realizada no futuro. Se não, sequer haveria interesse do particular no ato da corrupção em si.
E o candidato venal, mesmo não enquadrado na corrupção passiva, pode responder pela prática de outros crimes. Por exemplo, se o valor recebido for destinado à campanha – independentemente da intenção do doador – e não for adequadamente declarado, o candidato poderá responder pelo crime falsidade ideológica eleitoral ou “caixa-dois” (artigo 350 do Código Eleitoral). Não só: se a promessa de favorecimento ao doador ocorrer como solicitação de votos, o candidato poderá responder pelo crime previsto no artigo 299 do mesmo código, que incrimina a “compra de votos”.
Para corrupção, contudo, concluímos que o risco concreto que o agente oferece à máquina pública depende da distância existente entre eles ao celebrar o acordo ilícito, o chamado pacto de injusto (Unrechtsvereinbarung)[8] que define a corrupção. Em algum lugar do espectro Cidadão Comum → Candidato → Candidato Eleito → Funcionário Público, deve existir um ponto ótimo a partir do qual o crime de corrupção passiva possa se configurar, que concilie duas necessidades contrapostas: levar a sério o caráter especial de um crime que só pode ser praticado por funcionários públicos e, ao mesmo tempo, responder ao anseio intuitivo de punir candidatos infratores.
[1] LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e polícia: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Ed. FGV. p. 143.
[2] BREDA, Juliano. Corrupção, lavagem de dinheiro e política. Marcial Pons. 1. ed. p. 61
[3] BELLO, Ludmila Carvalho Gaspar de Barros. A responsabilidade criminal do candidato a cargo eletivo e o crime de corrupção passiva. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2021. p. 119/120.
[4] Id. BELLO, 2021. p. 137.
[5] Para uma discussão interessante acerca do bem jurídico afetado pelo crime de corrupção passiva, ver: RUIVO, Marcelo. O bem jurídico do crime da corrupção passiva no setor público. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, Ano 25, n. 1-4 (Janeiro-dezembro 2015), p. 264, 283. Disponível em:
[6] GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. A amplitude do tipo penal de corrupção passiva. JOTA, 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-amplitude-do-tipo-penal-da-corrupcao-passiva-26122018.
[7] GRECO, Luís. TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor. TEIXEIRA, Adriano (org.). Crime e política. São Paulo: FGV, 2017, p. 19-51. p. 32.
[8] É esse, como explicam Luís Greco e Adriano Teixeira, o “cerne dos delitos de corrupção”, segundo a “concepção dominante na Alemanha” (GRECO, Luís. TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor. TEIXEIRA, Adriano (org.). Crime e política. São Paulo: FGV, 2017, p. 19-51. p. 32). Os autores citam como referência, entre outros estudos: VOLK, Klaus. Die Merkmale der Korruption und die Fehler bei ihrer Bekämpfung. In: GÖSSEL, Heinz; TRIFFTERER, Otto (Org.). Gedächtnisschrift für Heinz Zipf Heidelberg: C.F. Müller, 1999, p. 419-431. S. 419 (420).