Energia é um conceito abstrato dotado da capacidade de produzir movimento, transformar ambientes, gerar riqueza, proporcionar simplicidade e conforto à vida humana. Entretanto, em face da urgente necessidade de descarbonização da economia, decorrente do uso de combustíveis fósseis, o desenvolvimento de fontes energéticas sustentáveis é o epicentro dos debates globais que envolvam o tema “carbono neutro”.
Isso representa um diferencial significativo para nossas indústrias, uma vez que a quantidade de CO2, um gás de efeito estufa, gerada por kg de produto manufaturado (pegada de CO2), é reduzida, agregando valor ao produto nacional. Apesar da clara necessidade de apresentar soluções, os desafios tecnológicos envolvidos são gigantescos e decorrem das inúmeras formas pelas quais consumimos, transportamos e usamos, cada vez mais, a energia.
Considerando a diversidade das fontes de produção e formas de consumo, é natural adotar múltiplas alternativas para a plena descarbonização da economia. Neste ponto, o hidrogênio verde (H2V), ou seja, aquele produzido por energias renováveis, é uma das soluções mais adequadas à urgência ambiental. Assim, apesar de o Brasil ter 51,6% de sua matriz energética relacionada a fontes não renováveis, 82,9% de sua produção elétrica advém de fontes renováveis e está em crescimento, o que coloca o país em uma tremenda vantagem estratégica para ter o protagonismo neste processo de transição energética.
A ação, urgente e necessária, para o pleno aproveitamento do nosso potencial, está sendo gerida em amplas frentes da sociedade civil organizada, sendo pauta do Instituto Nacional do Desenvolvimento da Química (IdQ) e da Frente Parlamentar da Química (FPQ), que defendem que o hidrogênio sustentável seja reconhecido como uma oportunidade de neoindustrialização para o Brasil, propondo medidas como pesquisa, formação, certificação, financiamento, e desenvolvimento de rotas tecnológicas. Em seu manifesto, o IdQ defende que o H2V seja utilizado prioritariamente para descarbonizar a indústria. Para isso, sugere:
desenvolver a pesquisa, formação, capacitação e retenção de capital humano;
desenvolver arcabouço regulatório e a certificação do hidrogênio produzido no Brasil;
a utilização de uma rede de gasodutos para transporte;
disponibilização de linhas de financiamento atrativas;
autossuficiências das plantas voltadas à exportação;
avaliação das rotas tecnológicas que o Brasil deveria apostar, prioritariamente para a melhor aplicação para o hidrogênio verde;
reconhecimento do H2V como uma oportunidade de neoindustrialização para o Brasil.
Ao menos dois projetos legislativos de 2023 buscam regulamentar a produção e incentivar o uso do H2V no Brasil. O PL 2308, de autoria do deputado Gilson Marques (Novo-SC), que dispõe sobre o Marco Legal do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, incorporando incentivos fiscais para o incentivo à produção e o uso do hidrogênio verde; e o PL 5174 (apensado ao PL 327/21), de autoria do deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten).
Na esfera governamental, o H2V é igualmente pauta do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, ao incluir no Regime Especial para Indústria Química o tema sustentabilidade como um dos pilares deste programa. O objetivo é organizar a orientação estratégica para as ações de desenvolvimento da economia do hidrogênio no Brasil, permitindo a harmonia com as demais fontes de nossa matriz energética. Para isso, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) criou o Conselho Gestor do Programa Nacional de Hidrogênio (Coges-PNH2), vinculado ao Ministério de Minas e Energia, que possui em sua composição diferentes ministérios e instituições para a aprovação do plano trienal para esta relevante fonte energética.
Em termos de projetos, inúmeros estados, entre eles Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão, discutem políticas fiscais que viabilizem o aproveitamento das correntes de vento e luz abundantes, para a atração de projetos visando a produção local do hidrogênio verde, para exportação ou consumo.
O Governo do Paraná divulgou recentemente que está mapeando o cenário do hidrogênio renovável no estado e que busca desenvolver medidas voltadas ao licenciamento, financiamento e desoneração da cadeia produtiva. O Governo de São Paulo anunciou que irá construir na Politécnica da USP a primeira estação do mundo a abastecer veículos com hidrogênio extraído a partir do etanol, aprimorando a tecnologia do hidrogênio verde. Ainda, foi divulgado o financiamento de 24 projetos privados de transição energética, com um aporte próximo a R$ 25,8 bilhões, com uma estimativa de criação de cerca de 7.800 novos empregos em São Paulo.
Municipalidades também atuam na transição energética. A Prefeitura de São Paulo possui metas previstas em lei municipal para reduzir as emissões de CO2 do sistema de transporte público em 100% até 2038, além de realizar o reembolso parcial do IPVA para incentivar o uso de carros a hidrogênio ou elétricos (Decreto 61.819/2022).
Em outubro de 2023, o BNDES aprovou um financiamento de R$ 2,5 bilhões para a compra de ônibus elétricos pela capital paulista, que possui um dos maiores sistemas de transporte público do mundo, transportando, em média, 7,3 milhões de passageiros por dia útil em 13 mil veículos e 1.347 linhas. Com esse valor do financiamento, espera-se a compra de entre 1.000 e 1.300 elétricos, permitindo a substituição de cerca de 10% da frota atual. A implantação dos novos ônibus deve ocorrer em 2024 e evitará a emissão de aproximadamente 63 mil toneladas de CO2 equivalente/ano na atmosfera.
Ao substituir parte da nossa matriz energética de origem fóssil (51,6%) pelo gás H2V, em uma grande gama de aplicações, como caldeiras, fornos e carros, teremos uma geração de energia descarbonizada e a consequente produção de itens manufaturados “carbono neutro”, o que é um tremendo diferencial para nossas indústrias, principalmente devido à inexistência da produção do CO2 na produção destes itens.
Em uma sociedade cada vez mais consciente em relação ao seu papel na degradação do planeta, a migração de uma manufatura ambientalmente degradante com elevados níveis de carbono para uma manufatura de produtos “carbono neutro” tem em sua matriz energética um ponto limitante e desafiador, principalmente para países como China e EUA, onde a queima de combustíveis fósseis responde por parcela significativa de suas emissões.
A importância do tema, bem como seu potencial de alavancar de forma qualificada os diversos produtos manufaturados no país como “carbono neutro”, é uma das oportunidades ímpares que a matriz energética do Brasil nos permite alçar e dar, em sua essência, um pleno significado ao termo neoindustrialização no Brasil, uma vez que, ao contrário da industrialização clássica, esta é feita sobre uma matriz energética essencialmente de baixo carbono e plenamente alinhada com as ações necessárias para mitigar os impactos do clima.
Este pode ser o caminho para a retomada da competitividade da indústria brasileira, de modo geral, e da química, em particular, viabilizando novos investimentos propulsores de desenvolvimento para a economia do país com a respectiva redução do consumo de combustíveis fósseis.
Para fins de justiça com os vários projetos em andamento no Brasil, em diferentes estados e com diferentes entes federativos, inclusive universidades, federações das indústrias e empresas privadas, torna-se imperativo a constituição de um banco de projetos para o pleno compartilhamento de conhecimento e iniciativas em andamento, bem como enriquecer as diversas discussões com as demandas e propostas do setor, de tal forma que tenhamos a capacidade em um futuro próximo de produzir ainda mais itens com o rótulo carbono neutro, agregando para a indústria nacional uma capacidade produtiva à frente de muitos dos nossos competidores.
Neste ponto, precisamos avançar com o Marco Legal do Hidrogênio de Baixa Emissão, as políticas fiscais promotoras de crescimento e a consolidação dos processos de mensuração dos Gases Efeito Estufa (GEE) em conformidade com o Protocolo GHG para que a base da nossa neoindustrialização se consolide e seja vista como exemplo para as demais nações do mundo.
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Os autores agradecem a Milton Rego, diretor do IdQ e presidente-executivo da Abiclor (Associação Brasileira da indústria de Cloro Álcalis e Derivados), pela revisão deste artigo.