Uma das definições de República, no dicionário Aurélio, é organização política de um Estado com vista a servir à coisa pública, ao interesse comum. No Brasil, adotamos esse formato em 1889 e o confirmamos em plebiscito em 1993.
Somos, portanto, formalmente uma República. Isso é indiscutível .O que se pode discutir, contudo, é o quão republicana é a República em que vivemos? O tal interesse comum, base do conceito de República, tem sido alcançado?
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Bem, antes de tentar responder essa pergunta, é necessário explicar que, no nosso entendimento, interesse comum é o atendimento dos objetivos estabelecidos no art. 3º da Constituição Federal: inclusão social, eliminação de pobreza e desigualdades, desenvolvimento do país e promoção do
bem de todos, sem qualquer tipo de preconceito.
Portanto, de forma resumida, o Estado deveria se pautar por beneficiar a maior quantidade de pessoas possível, melhorando indicadores socioeconômicos.
Um bom exemplo de atuação estatal que se encaixa nesse conceito seria o Sistema Único de Saúde (SUS): uma política pública que contempla a assistência gratuita à saúde para qualquer pessoa que, estando em território nacional, dela necessite.
Na mesma linha encontra-se o programa Bolsa-família, voltado ao combate da pobreza e da miséria no país, bem como ao acesso a direitos básicos por seus beneficiários.
Em outra vertente, dispomos de legislação avançada no que concerne à proteção de crianças e adolescentes, de idosos e de mulheres vítimas de violência.
Apesar dessa leva de bons exemplos, empilham-se situações em que o Estado atua de forma contrária ao interesse comum, em desacordo com o que se espera de uma República.
Uma dessas situações consiste na enorme desigualdade social presente no Brasil, agravada por legislação e políticas públicas que dificultam a transposição desse obstáculo.
Segundo o banco UBS, em 2022, o 1% mais rico da população brasileira ficou com mais de 48% da riqueza produzida aqui. A título de comparação, nos Estados Unidos, essa mesma fatia da população ficou com 34% da riqueza de lá. Conseguimos ser mais desiguais do que um dos maiores baluartes
do capitalismo mundial.
Some-se a essa desigualdade de riqueza uma aguda desigualdade tributária. No Brasil, milionários que ganharam mais de 2,1 milhões de reais em 2021 pagaram 5,5% de alíquota efetiva de imposto de renda. Profissionais como bancários, assistentes sociais e professores do ensino fundamental, que receberam em média 94 mil reais no mesmo ano, pagaram uma alíquota por volta de 8%.
Além disso, conforme estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, dos mais de 640 bilhões de reais que o Estado brasileiro deixará de receber por conta de renúncias fiscais em 2023, 440 bilhões – ou seja, mais de dois terços das isenções – não têm efeito comprovado na geração de benefícios para a sociedade.
Diante desse quadro, fica difícil chamar nosso sistema tributário de republicano. Sua estruturação reforça distorções, diminuindo não apenas a renda disponível para as camadas mais pobres da sociedade, mas também removendo recursos preciosos para que o Estado possa atuar em prol da redução dessas distorções.
Sem dinheiro para sustentar uma ação estatal que garanta, como estipula nossa Constituição, pontos essenciais como saúde, educação e segurança, cria-se um vácuo que fomenta problemas sociais seríssimos, como fome, violência e criminalidade.
E, no enfrentamento à criminalidade, há evidências de graves falhas nas ações adotadas pelo poder público, que se afastam do republicanismo expresso em nossa constituição.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nossas polícias mataram mais de 6.400 pessoas em 2022vi. Para fins de comparação, na Índia, em 2019, houve cerca de 1.700 mortos por ações policiais.
O Brasil, com 200 milhões de habitantes, tem uma polícia que matou quase quatro vezes mais do que a da Índia, com população de 1,4 bilhão de pessoas. Temos uma das polícias mais letais do mundo, apesar de não adotarmos a pena de morte em nosso sistema judicial.
Uma polícia promotora de chacinas frequentes, como vemos cotidianamente no noticiário, vai na contramão do esperado republicanismo na segurança pública, isto é, eleger como prioridade a proteção da vida.
Do mesmo modo, temos uma política de superencarceramento no país, que já possui a terceira maior população prisional do planeta, mantida em instituições superlotadas, inseguras e insalubres, como afirma o Conselho Nacional de Justiça. Pessoas sob a tutela do Estado não têm sua dignidade e integridade física e mental preservadas. Nessas condições, a pena de privação de
liberdade fica acrescida da punição por tortura, esta vedada por nosso ordenamento jurídico e por acordos internacionais.
Vale aqui abrir um parêntese: embora a tortura não ganhe o devido destaque na pauta nacional, ela foi tema central da última Conferência Internacional das Instituições Nacionais de Direitos Humanos (INDHs), realizada em Copenhague entre 6 e 8 de novembro deste ano, da qual a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) tomou parte como observadora. No encontro, debateu-se como uma INDH pode fazer diferença significativa no enfrentamento à tortura
e aos maus-tratos, atuando em conjunto com o Estado, a sociedade e outras instituições voltadas a esse tema.
Importa lembrar que a superpopulação em instituições prisionais, fator dos mais relevantes na prática da tortura no cárcere, recebe contribuição fundamental de uma interpretação relativista da nossa lei de drogas (Lei nº 11.343/2006). A norma diferencia os traficantes dos usuários de drogas. Os primeiros vão para a prisão; os últimos, não. Contudo essa diferenciação é feita de forma subjetiva pelas autoridades públicas e, muitas vezes, está baseada na cor da pele e na condição econômica dos acusados. Para essa aplicação enviesada da lei, frequentemente concorrem policiais, promotores e magistrado(a)s. Privar uma pessoa da liberdade, sem forte justificativa e quando há alternativas ao encarceramento, certamente não atende ao bem de todos.
O descumprimento a diretrizes republicanas se esparrama por outros setores da atividade pública. O que dizer de emendas ao orçamento federal feitas sem a devida transparência, como ocorreu no Congresso Nacional até o ano passado? O chamado “orçamento secreto” impedia os cidadãos de fiscalizar a aplicação de recursos públicos pelos parlamentares, favorecendo desvios de verbas.
Como ter espírito republicano, se há o subfinanciamento da educação pública, a qual recebe 15% do PIB per capita para cada aluno(a) da educação básica, quando o necessário seriam 25%?
É praticamente um consenso apontar a educação como fator essencial ao desenvolvimento individual e coletivo, mas seguimos alocando a ela menos recursos do que o necessário, impedindo o progresso da maioria de nosso povo e, por consequência, do nosso país.
Há inúmeros outros casos pondo à prova o republicanismo desta nação. Por óbvio, não é possível esperar uma ação ou transformação utópica do Estado, pois há limites à sua atuação. Limites de ordem política, econômica e social.
No entanto, não se pode aceitar um distanciamento tão descomunal entre os preceitos de nossa Constituição e os rumos adotados pelo poder público. Entre a promoção do bem de todos, inscrita no texto da Carta de 1988, e a efetivação do bem de poucos, presente no contexto de 2023, há um abismo que se alarga dia a dia. Não é aceitável que sejamos uma república na teoria e uma antirrepública na prática. Nossas classes dirigentes e nós, como eleitores, deveríamos repensar que
tipo de nação estamos (des)construindo. A se manter esta realidade, como poderemos de fato celebrar o 15 de novembro?
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i https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2013/Abril/plebiscito-sobre-forma-e-sistema-de-governo-completa-20-anos. Acesso em 07/11/2023.ii https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sus . Acesso em 07/11/2023.
iii https://aps.saude.gov.br/ape/bfa . Acesso em 07/11/2023.
iv https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/08/28/milionarios-pagam-menos-imposto-de-renda-que-professoresmedicos-
e-policiais-mostra-estudo.ghtml. Acesso em 07/11/2023.
v https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/05/31/isencoes-fiscais.htm . Acesso em 07/11/2023.
vi https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf . Acesso em 07/11/2023.
vii https://www.nytimes.com/2020/08/20/world/asia/india-police-brutality.html . Acesso em 07/11/2023.
viii https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/cidadania-nos-presidios/ . Acesso em 08/11/2023.
ix https://ganhri.org/14th-international-conference/ . Acesso em 09/11/2023.
x https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38590880 . Acesso em 09/11/2023.
xi https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/ . Acesso em 09/11/2023.
xii https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/entenda-o-que-e-o-orcamento-secreto-e-porque-ecriticado. Acesso em 08/11/2023
xiii https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/02/educacao-publica-subfinanciada.shtml . Acesso em 08/11/2023