O bolsonarismo e o futuro do STF

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Com a estreiteza mental que o caracteriza e a pobreza de espírito de seus líderes, o bolsonarismo anunciou que um de seus projetos para as eleições de 2026 é aumentar suas bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado.

Segundo o que foi publicado recentemente pela imprensa, o objetivo é obter no Legislativo uma maioria parlamentar que permita a aprovação de um ambicioso projeto de esvaziamento de prerrogativas do Supremo Tribunal Federal (STF). A ideia é esvaziar a corte que, por ser encarregada de zelar pela constitucionalidade das leis e de exercer uma atuação contramajoritária no controle dos demais Poderes, dispõe de acentuado poder de revisão legislativa. 

Ao justificar essa iniciativa, os bolsonaristas alegam que, nos últimos anos, o Supremo teria exacerbado o exercício de suas funções de controle, correção e supressão de omissões inconstitucionais dos demais Poderes.

Dito de outro modo, ao avocar para si prerrogativas do Legislativo e ao declarar a inconstitucionalidade de projetos do Executivo formulados por governantes eleitos democraticamente, a corte teria deixado de ser uma instituição jurídica, encarregada de resolver tecnicamente os mais variados tipos de litígio, inclusive questões políticas, abrindo assim caminho para uma ditadura do Judiciário. Portanto, se elegerem uma bancada numerosa, afirmam seus líderes, o bolsonarismo teria condições de conter os ministros do Supremo, acabando assim com todos os tipos de ativismo em nossas instituições judiciais.

Como em seu governo o bolsonarismo procurou esvaziar os órgãos de controle institucional e administrativo, desvirtuou leis, recorreu a instrumentos jurídicos que não precisavam passar pelo crivo do Legislativo, baixou medidas provisórias abusivas e apresentou propostas de emenda constitucional que suprimiam prerrogativas em matéria de liberdades públicas e de autonomia administrativa dos estados e municípios, os argumentos invocados para pôr fim à “ditadura do Judiciário” são hipócritas. 

A iniciativa revela a incapacidade do bolsonarismo de atuar com base nas regras do jogo democrático – a ponto de seu principal líder estar inelegível, em razão de práticas ilegais e de afrontas à ordem jurídica cometidas durante seu governo, entre 2019 e 2022. E, todas as vezes em que foi contido pelo Supremo, acusou a corte de agir de modo autoritário.

Por isso, se o bolsonarismo tiver sucesso em seu projeto de eleger em 2026 uma maioria parlamentar para revogar prerrogativas da corte encarregada de zelar pela ordem constitucional, o país mais uma vez estará sob o risco de uma tirania da mediocridade.

Uma das consequências decorrentes das tensões institucionais deflagradas pelo bolsonarismo, desde sua ascensão ao poder, está no fato de que elas obscurecem vários problemas estruturais em nossa sociedade. Um deles é a invasão da vida social e econômica pelo direito – fenômeno que tem afetado não só o Brasil, mas vários outros países desenvolvidos e em desenvolvimento. São problemas decorrentes da transição da sociedade industrial para a sociedade informacional, iniciada no final do século 20 e acelerada na primeira década do século 21. 

Essa transição propiciou o avanço do neoliberalismo sobre a social-democracia. E se por um lado levou a um processo de desconstitucionalização, deslegalização e desregulamentação no âmbito da economia, por outro abriu caminho para que o Judiciário se convertesse num locus não só para a preservação de direitos adquiridos, mas, igualmente, para assegurar a efetividade de novos direitos, tais como os da mulher, da infância, do meio ambiente e das cidades.

Segundo o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só em 2022 foram protocolados mais de 31,5 milhões de novos processos – um aumento de 10% em relação a 2021 e recorde na série histórica nos últimos 14 anos. Em outubro de 2023, 84 milhões de processos tramitavam nos tribunais do país.

Esses números são expressivos. Eles revelam que a busca pelo reconhecimento de direitos nos tribunais pode ser vista como um sinal de vitalidade do regime democrático em um período histórico de intensas transformações. Mostram como a evolução do país tornou mais complexa a atuação dos tribunais na estabilização de expectativas e na solução de conflitos. Ajudam a entender por que a política foi judicializada no país, ao mesmo tempo em que a Justiça também se politizou no decorrer desse período.

A magnitude desses números, conjugada com uma certa imprecisão de institutos jurídicos que entraram em vigor entre 1980 e 2022, também explica por que os tribunais enfrentam dificuldades para se modernizar, porque suas sentenças definitivas demoram para ser tomadas e porque muitas de suas decisões se contrapõem umas às outras, deixando inseguros quem bate às suas portas para resolver litígios. 

É nesse cenário que o bolsonarismo tem acusado a imprensa de estar “surpreendentemente silenciosa” com relação ao que chama de “abusos do Judiciário”. É nesse cenário que tenta deslegitimar os tribunais superiores, afirmando que seus ministros estariam “fascinados com o poder”.

É nesse cenário que o bolsonarismo continua agindo de modo oportunista, declarando guerra a um Poder que, apesar de todos os problemas estruturais da Justiça brasileira, continua sendo vital para assegurar a continuidade da democracia e evitar que o país se converta numa tirania da mediocridade. Não fosse assim, o Supremo não teria sido um dos principais alvos das afrontas criminosas e antidemocráticas cometidas na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.