O avanço dos processos estruturais no STF e o protagonismo da advocacia pública

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Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal vem se afirmando como espaço privilegiado de resolução de controvérsias complexas envolvendo políticas públicas. A crescente judicialização de temas como saúde, educação, segurança pública, meio ambiente e moradia tem revelado os limites das técnicas processuais tradicionais e impulsionado o avanço do que se convencionou denominar processos estruturais, instrumentos que buscam compatibilizar a efetividade dos direitos fundamentais com a separação de poderes e a viabilidade administrativa das decisões judiciais.

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Mais do que uma tendência jurisprudencial, esse movimento representa uma mudança de paradigma na forma de pensar o processo constitucional — e impõe à Advocacia Pública um novo papel: o de agente ativo na construção da solução, superando a postura meramente defensiva historicamente associada à representação judicial do Estado.

A lógica estrutural e o novo papel do STF

Os processos estruturais se consolidaram no direito comparado como mecanismos destinados a enfrentar litígios de natureza policêntrica, isto é, aqueles que envolvem múltiplos atores, interesses difusos e políticas públicas de alta complexidade. Neles, o foco não está apenas na reparação de um dano individual ou na declaração de inconstitucionalidade de um ato ou de uma norma específica, mas na transformação gradual de uma realidade institucional disfuncional, por meio de decisões dialogadas, monitoradas e implementadas em etapas.

No Brasil, a adoção dessa metodologia tem se intensificado no Supremo Tribunal Federal, notadamente em ações de controle concentrado e arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) voltadas à efetivação de direitos sociais e fundamentais. Casos paradigmáticos incluem a ADPF 347, que reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário, e a ADPF 709, sobre a proteção de povos indígenas durante a pandemia da Covid-19.

Em ambos os precedentes, o STF reconheceu que decisões pontuais, como as tradicionalmente proferidas em processos judiciais, não bastam quando o problema é estrutural e podem ainda acabar onerando de forma significativa o orçamento público do Estado. Exige-se, para a solução das demandas estruturantes, acompanhamento contínuo, construção cooperativa de soluções e permanente ajuste das medidas conforme a capacidade institucional dos entes federativos envolvidos.

O diálogo institucional como método de implementação de políticas públicas

Os processos estruturais desafiam a lógica tradicional de que o Judiciário decide e o Executivo cumpre. O foco desloca-se para um modelo dialógico de governança judicial, no qual a autoridade judicial exerce função de coordenação, e não de substituição da política pública e, em vez de simplesmente substituir a vontade das partes por uma decisão autoritária para “encerrar” o caso, atua como indutora e coordenadora de um processo participativo, muitas vezes sendo o protagonista na promoção do diálogo entre autoridades do próprio Poder Executivo.

O objetivo central do processo estruturante é criar condições para que os atores envolvidos — órgãos públicos, entidades e interessados — construam conjuntamente a solução para a desconformidade das estruturas das instituições burocráticas. Nesse contexto, audiências públicas, reuniões técnicas e despachos coletivos assumem função primordial. Elas se convertem em arenas de deliberação interinstitucional, permitindo que decisões sejam calibradas de acordo com evidências técnicas, dados orçamentários e impactos administrativos.

A inovação não reside apenas no resultado, mas no processo de construção da decisão, que passa a incluir órgãos do Poder Executivo, Ministério Público, Advocacia Pública, sociedade civil e especialistas. O processo estrutural representa, portanto, menos uma ordem judicial e mais uma arquitetura de solução compartilhada.

A advocacia pública como protagonista de soluções estruturantes

É nesse cenário que a Advocacia Pública — em todas as suas esferas — assume protagonismo decisivo. Sua missão constitucional de defesa do interesse público e assessoramento jurídico do Estado a coloca na posição de mediadora entre o dever de legalidade e a necessidade de eficiência e efetividade.

No contexto dos processos estruturais, em que o julgador enuncia qual o estado ideal de coisas os sujeitos do processo devem almejar, o advogado público deixa de atuar apenas como defensor judicial do status quo e passa a ser coparticipante da formulação de políticas públicas judicialmente supervisionadas.

Sua intervenção qualificada é essencial em uma tripla dimensão: diagnóstica, na medida em que oferece ao tribunal um retrato realista das limitações orçamentárias, administrativas e normativas que condicionam a execução das políticas públicas; propositiva, ao contribuir com alternativas juridicamente viáveis e financeiramente sustentáveis para o cumprimento progressivo das decisões; e executiva, mediante o auxílio na implementação e monitoramento das medidas.

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Ao assumir essa postura colaborativa, a Advocacia Pública não renuncia à defesa institucional do ente federado, mas redefine o sentido de defesa ao priorizar a solução eficiente e legítima do conflito sobre a mera vitória processual.

De outro lado, a ampliação dos processos estruturais traz consigo desafios significativos. Em primeiro lugar, há o risco de hipertrofia judicial, com o STF assumindo papel de gestor de políticas públicas em detrimento da autonomia dos Poderes Executivo e Legislativo. Para evitar essa distorção, é fundamental que a ação judicial se adapte às contingências para alcançar o estado de coisas ideal pretendido e que o tribunal atue como catalisador do diálogo, e não como formulador exclusivo das políticas.

Nesse ponto, a atuação técnica e prudente da Advocacia Pública é decisiva. Ela funciona como garantia de racionalidade institucional, lembrando que a efetividade de um direito não se alcança com a mera imposição judicial de condutas, mas com a compatibilização de valores constitucionais e limites materiais do Estado.

Outro desafio é a necessidade de capacitação continuada dos advogados públicos em temas como governança pública, análise de políticas públicas, orçamento e indicadores de impacto social. O domínio desses instrumentos é indispensável para que a atuação nos processos estruturais seja estratégica e tecnicamente robusta.

Por outro lado, há também uma oportunidade de fortalecimento institucional. Ao participar da construção de soluções, a Advocacia Pública reforça sua identidade como órgão de Estado e não de governo, consolidando sua imagem perante o STF e a sociedade como agente de equilíbrio entre legalidade e efetividade.

O avanço dos processos estruturais revela uma transformação profunda no modo de se compreender o papel da Justiça Constitucional. Já não se trata apenas de controlar excessos, mas de corrigir déficits estruturais que perpetuam violações de direitos fundamentais. Essa nova fase do constitucionalismo brasileiro — marcada por decisões progressivas, planos de ação e monitoramento judicial — exige uma Advocacia Pública mais proativa, capaz de transitar entre o jurídico e o técnico, entre o normativo e o empírico.

A advogada pública do século XXI não pode ser apenas a guardiã da legalidade formal; deve ser a intérprete pragmática do interesse público, aquela que compreende que a boa defesa do Estado é também a defesa de soluções efetivas e sustentáveis para a sociedade.

Em suma, pode-se dizer que o crescimento dos processos estruturais no STF não é um fenômeno isolado, mas parte de uma tendência global de judicialização dialógica das políticas públicas. Ele reflete a maturidade de um sistema jurídico que reconhece que os grandes problemas do Estado contemporâneo — desigualdade, exclusão, ineficiência — não se resolvem com decisões unilaterais, mas com arranjos institucionais cooperativos.

Nesse cenário, a Advocacia Pública emerge como protagonista indispensável. Cabe-lhe traduzir a complexidade da máquina estatal para o linguajar jurídico, construir pontes entre a decisão judicial e a política pública, e assegurar que o ideal de efetividade não se converta em paralisia administrativa, tendo como farol a defesa do Estado Constitucional.