Quando eventos nitidamente concorrenciais são resolvidos por meio de regulamentação e fiscalização abusiva partindo de uma agência reguladora há um claro desvio de função do poder público, normalmente não só em detrimento da sociedade empresária sujeita à penalidade, mas da própria comunidade de consumidores, que se vê privada das benesses decorrentes do aumento de competição entre prestadores de serviço.
Esse é o contexto que se dá quando ocorrem apreensões de ônibus pelo fato de que a contratação do serviço de transporte coletivo teria se dado por intermédio de uma plataforma de conexão entre passageiros e prestadores do fretamento.
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No entender da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (ARTESP), extraído de uma interpretação equivocada do art. 40 do Decreto Estadual 29.912/1989, a mera utilização de uma ferramenta tecnológica permitiria ao órgão fiscalizador constatar o desvirtuamento do serviço de fretamento de passageiros e, como decorrência disso, ela poderia não somente autuar o fretador como também apreender imediatamente o veículo utilizado para o transporte de passageiros.
A ARTESP foi criada em 2002, por meio da Lei Complementar 914, que definiu que a agência, de fato, tem competência para regular e fiscalizar todas as modalidades de serviço público de transporte autorizados, concedidos ou permitidos a entidades de direito privado.
Ocorre, contudo, que a lei em referência estipulou precisa e taxativamente as sanções que poderiam ser impostas pela ARTESP em seu art. 31: advertência, multa, suspensão, cassação e declaração de inidoneidade.
Como se vê, a lei simplesmente não outorga à agência a possibilidade de apreender veículos durante o transporte de passageiros, e isso não passou despercebido pelo parecer do Advogado-Geral da União, juntado aos autos da ADI 7364 – que, ao analisar a constitucionalidade do Decreto Estadual que regulamenta o fretamento coletivo de passageiros em São Paulo, discute se medidas como a apreensão poderiam encontrar previsão em decretos ou, por outro lado, somente por lei em sentido formal:
“Assim, os Decretos 29.912/89 e 29.913/89, no que incompatíveis com a referida legislação, perderam a sua eficácia. […] Em outros termos, a questão debatida nos autos resolve-se no plano da legalidade, não da validade”.
Por essas razões, considera-se absolutamente inadequada e desproporcional a apreensão de veículos pela ARTESP durante a realização do transporte contratado se não há risco para a segurança dos passageiros.
A vontade do consumidor
Apenas para situar todos os leitores, cumpre destacar que o fretamento colaborativo retrata a prestação de um serviço que se tornou popular com o avanço da tecnologia e, por consequência, pelo estabelecimento de uma comunidade de consumidores com interesses em comum. É dizer: pessoas que não necessariamente se conhecem no mundo físico acabam se unindo, por intermédio de uma plataforma digital (como a Buser), para contratar transporte coletivo – um ônibus ou uma van, na prática – do ponto A ao ponto B. Nada além disso.
A partir dessa contextualização é, em certa medida, fácil perceber que o raciocínio evidenciado pelas fiscalizações da agência estadual é equivocado por uma série de motivos.
O transporte público de passageiros é um serviço de interesse público que pode ser prestado por entes privados. É isso o que prevê o art. 21, XII, “e” da Constituição Federal de 1988, e nenhuma norma estadual poderia contrariá-lo.
Vistas as coisas sob este prisma, fica evidente a necessidade de respeito, por um lado, à autonomia da vontade do público consumidor e, por outro, da liberdade de iniciativa econômica desenvolvida pelos entes privados que operam o fretamento colaborativo – seja como intermediário, como transportador, ou até mesmo como colaborador (motorista, colaborador, mecânico). Todas essas pessoas naturais e jurídicas realizam uma atividade absolutamente legítima, porque contratadas, em um ambiente de livre iniciativa, por um grupo que deseja se movimentar livremente e sem restrições injustificadas impostas pelo Estado.
Apreender é inadequado
Medidas restritivas de direitos e que revelam, de alguma forma, a invasão do poder público em contratações privadas, devem ser aplicadas com proporcionalidade. Os direitos e, em última análise, a própria dignidade de todos os atores envolvidos em determinado negócio jurídico deve ser levada em conta na oportunidade em que aplicada a sanção administrativa, principalmente quando a referida penalidade produzir efeitos imediatos, durante a prestação do serviço contratado.
Por esse motivo é que, por exemplo, a apreensão de um ônibus lotado de passageiros simplesmente não é uma medida adequada para combater supostas irregularidades verificadas durante fiscalizações realizadas em rodovias federais e estaduais.
Salvo hipótese em que efetivamente comprovados riscos graves para a segurança dos passageiros, não é razoável que a administração pública incorra em abuso de poder para interromper uma viagem em curso e, na prática, colocar dezenas de pessoas em um acostamento, privando-os de alimentação, segurança, aposentos e transporte adequado. Muito menos quando a referida viagem está amparada por autorizações/licenças emitidas pela própria administração pública.
Uma discordância interpretativa a respeito da natureza do serviço prestado não poderia prejudicar e expor a riscos as pessoas que estão, naquele momento, dentro do ônibus. Isso se aplica tanto aos trabalhadores contratados quanto às dezenas de pessoas que contrataram o serviço de transporte.
É importante esclarecer, aliás, que a configuração dos serviços de transporte coletivo vem sendo objeto de diversas discussões em todo o país, inclusive em processos judiciais, colocando, usualmente, de um lado plataformas tecnológicas que permitem a contratação de fretamento coletivo e, de outro, as tradicionais sociedades empresárias que há décadas possuem o monopólio do transporte regular de passageiros (ônibus de linha). Empresas essas que se perpetuam, há décadas, sem concorrência – sem sequer terem passado por processo licitatório a que estariam sujeitas e como previsto na constituição.
No âmbito federal já há uma discussão sobre a abertura do setor via regime de autorização de linhas – que caminha a passos lentos e vem sendo travada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), é verdade. Mas o debate existe. Em São Paulo ainda estamos longe disso.
Ou seja, não se vê o caminho para a abertura do transporte rodoviário nem de um lado – via fretamento – nem de outro – via linhas regulares. O cerco está claramente armado.
Como em outras oportunidades, identificar “para que serve” determinada deliberação nem sempre é uma atividade simples. Descobrir “a quem” ela serve, por outro lado, é uma tarefa que usualmente consome poucos instantes de pesquisa.
É difícil entender qual a dificuldade para abertura de um mercado pautado justamente pelo excesso de regulamentos, mas é muito fácil perceber quem são os beneficiados do resultado ocasionado pela edição de regulamentos que restringem o acesso aos serviços e preservam o ambiente de reserva de mercado.