Novos (e velhos) desafios à vista do Cade em 2024

  • Categoria do post:JOTA

2023 foi um ano agitado para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A autoridade analisou quase 600 atos de concentração econômica; negociou ou impôs remédios para aprovação de pelo menos 7 operações; reprovou a complexa proposta de aquisição do Grupo Smile pela Hapvida e encerrou imbróglios que se arrastavam há décadas, como o paradigmático caso Nestlé/Garoto.

Na frente de condutas, o Cade abriu dezenas de investigações, incluindo diversos novos casos de condutas unilaterais, comandados pela agora já estabelecida Coordenação-Geral 11, responsável pela análise dessas práticas, que concentra quase 50 processos. O Tribunal julgou ao menos 30 casos, dentre processos administrativos para imposição de sanções, homologações de acordos, atos de concentração complexos e apurações de gun jumping. Tudo isso em meio à expectativa (depois confirmada) de que o órgão ficaria sem quórum para instalação de sessões de julgamento ao final do ano, o que levou à suspensão dos prazos processuais por quase dois meses.

Nesta última quarta-feira esse interstício se encerrou, com a nomeação de três novos Conselheiros e uma nova Conselheira para o Tribunal. A recomposição do Conselho levará também a mudanças na área técnica: Diogo Thompson, que servia como Superintendente-Adjunto, à frente da análise de atos de concentração e condutas unilaterais, assume como Conselheiro e será portanto substituído na sua antiga função.

Essas importantes mudanças estruturais chegam em um momento relevante para a autoridade brasileira de defesa da concorrência. No próximo ano, casos de destaque chegarão à pauta de julgamento do Tribunal, enquanto investigações não menos relevantes continuam a ser instruídas pela Superintendência-Geral.

Em 2024, quase 10 anos após a assinatura do primeiro Acordo de Leniência relacionado à Operação Lava Jato, o Cade deverá iniciar o julgamento de uma série de processos administrativos referentes às condutas anticompetitivas investigadas em relação às empresas envolvidas. Essas mesmas condutas, muitas das quais divididas em dezenas de processos que correm separadamente perante a autoridade, foram objeto também de acordos – entre Leniências e Termos de Compromisso de Cessação – cujas obrigações, estabelecidas já há muitos anos, têm sido objeto de pedidos de revisão, relacionados principalmente à forma de pagamento das contribuições pecuniárias. Esses pedidos serão debatidos, sobretudo diante de recentes declarações de descumprimento de acordos por algumas empresas, com correspondente cancelamento de seus benefícios.

A revisão de acordos não será tema exclusivo dos casos da Lava Jato. No fim de novembro, a Petrobras solicitou ao Cade a renegociação dos TCCs que celebrou com a autoridade para encerrar investigações nos mercados de refino e gás natural. A empresa embasou seu pedido na aprovação de um novo plano estratégico para o período de 2024 a 2028, que prevê novos investimentos para exploração de óleo e gás. Quando negociados e assinados, em 2019, os TCCs contaram com a ampla participação do Governo, através dos Ministérios da Economia e Minas e Energia, bem como da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Dessa forma, é esperado que o processo de renegociação também envolva a conciliação de uma multiplicidade de autoridades, somado às diversas associações setoriais e agentes privados com interesses afetados pelos acordos.

A questão dos TCCs da Petrobras reascende o debate da intersecção entre política de defesa da concorrência, regulação setorial e políticas estatais mais amplas aplicáveis a setores regulados e de infraestrutura. Este tema foi destaque nas sabatinas dos novos Conselheiros conduzidas pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE) e deve permear decisões do Cade tanto em investigações de condutas anticompetitivas, quanto em atos de concentração.

A interação da defesa da concorrência com outras políticas estatais e regramentos setoriais também tem sido a tônica de outro importante tema recorrente na agenda do Cade: a concorrência em mercados digitais. Outro assunto que surgiu na sabatina da CAE, este continuará a ser um tópico relevante no próximo ano. Especialmente porque o Cade assumiu a liderança do working group da International Competition Network para condutas unilaterais e também diante dos intensos debates legislativos em torno de Projetos de Lei que procuram estabelecer uma regulação ex ante para plataformas digitais (sobretudo o PL 2.768/2022, o chamado “DMA Brasileiro” e o PL 2.630/2020, o chamado “PL das Fake News”). Considerando que ainda estamos longe de um consenso sobre estes projetos de lei, a tendência é que o Cade continue como autoridade referência e liderança no enforcement e advocacy estatais em casos sensíveis envolvendo mercados digitais.

Merecem atenção casos atualmente sob investigação envolvendo economias de plataformas – o caso movido pela Associação Brasileira das Empresas de Benefícios aos Trabalhadores (ABBT) contra o iFood no mercado de vouchers de benefícios, e a representação movida pelo Mercado Livre contra a Apple, envolvendo os mercados de desenvolvimento e distribuição de aplicativos são exemplos. Nos últimos anos, o Cade avaliou também atos de concentrações relevantes no setor, incluindo operações globais. A aquisição da empresa de jogos eletrônicos Activision Blizzard pela Microsoft recebeu grande atenção internacional, especialmente após um processo de quase dois anos para receber aprovação condicionada da autoridade britânica de defesa da concorrência.

Outro caso relevante foi o da joint-venture BusCo, entre operadoras de transporte rodoviário de passageiros, um setor com marcada concentração de mercado e que testemunhado um processo de digitalização. A venda de passagens de ônibus online (nas chamadas online travel agencies) que já havia sido detalhadamente analisada pelo Cade em caso recente, inclusive com aplicação de remédios antitruste, voltou ao radar da autoridade nesse caso, chamando atenção para a importância da análise de mercados com atividades tradicionalmente “offline” que passam a expandir e adaptar seus negócios para o mundo digital.

Esse foi também o caso da joint-venture formada entre tradings e originadoras para estabelecer um marketplace de produtos agrícolas no Brasil. Temas como acesso a plataformas e interoperabilidade, acesso e troca de informações concorrencialmente sensíveis e estruturas internas (por exemplo firewalls) capazes de mitigar riscos de condutas anticompetitivas foram tópicos relevantes analisados pelo Cade nesses casos.

O setor agrícola, aliás, trouxe outro tema de fronteira à agenda do Cade, que deve reaparecer com frequência: os arranjos cooperativos entre concorrentes para estudar e viabilizar iniciativas de inovação e sustentabilidade que sejam transversais ao setor. Nesse ano, o Tribunal avocou uma decisão da Superintendência-Geral que aprovava a constituição de uma joint venture para o desenvolvimento e operação de uma plataforma para padronização e medição de sustentabilidade na cadeia de suprimentos de commodities agrícolas. O caso, que acabou aprovado sem restrições, inaugurou uma investigação mais detalhada sobre os efeitos concorrenciais dos chamados “acordos verdes” entre concorrentes, há algum tempo discutidos na literatura especializada e analisados por autoridades no exterior.

A ponderação entre os benefícios e eficiências (potencialmente expansíveis a toda a indústria e seus stakeholders) e as restrições a curto e médio prazo à concorrência não é trivial, e deve reaparecer não apenas em casos envolvendo iniciativas de sustentabilidade, mas outros temas prementes e comuns a várias empresas de um mesmo mercado, como saúde e segurança do trabalho, criação e revisão de padrões de qualidade, gestão de cadeias de suprimento, atração e retenção de mão-de-obra etc.

Esses temas são recortes pontuais de uma miríade de discussões que devem chegar à autoridade brasileira da concorrência nestes próximos anos. Como autoridade com jurisdição ampla e atuação transversal, o Cade continua absolutamente central para a política e regulação das atividades econômicas no Brasil. Com formação renovada, há muito o que se esperar para 2024.