Novo tratado da OMPI sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais

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Sem folha não tem sonho, sem folha não tem festa, sem folha não tem vida, sem folha não tem nada. Em “Brasileirinho” (2015), Maria Bethânia e Uakti interpretam “Salve as Folhas”[1]. Lendo, recentemente, as notícias acerca do tratado da OMPI sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado, imediatamente o verso me veio à mente.

O tratado foi concluído e aprovado no último dia 24 de maio, em Genebra (Suíça), formalizando e documentando um debate que já durava mais de duas décadas. Muito comemorado, considerado um “tratado inovador e histórico”, é visto como instrumento protetor de recursos genéticos e conhecimentos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. O documento já foi adotado por 176 países-membros da OMPI, incluindo o Brasil, que teve papel protagonista em sua construção.

Além do Ministério das Relações Exteriores, a delegação brasileira incluiu o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o Ministério dos Povos Indígenas, o Ministério da Justiça e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), e teve a participação de representantes de povos indígenas de diferentes biomas.

A conferência diplomática na qual o tratado foi celebrado teve como presidente o representante permanente do Brasil junto aos Organismos Econômicos Internacionais, o embaixador Guilherme de Aguiar Patriota, personagem protagonista nas negociações finais que culminaram com a aprovação do novo tratado. Segundo Patriota, o documento constitui “o melhor compromisso possível e uma solução cuidadosamente calibrada, que busca conciliar e equilibrar uma variedade de interesses, alguns muito apaixonadamente defendidos ao longo de décadas”.

Mesmo aplaudindo a conquista de um tratado que, finalmente, reconhece a importância dos conhecimentos originários e de todo o trabalho e cultura de inovação científica-tecnológica desenvolvidos pelos povos indígenas e comunidades tradicionais de forma primorosa, desde muito antes da invasão e violação de suas terras por comitivas europeias, me parece fundamental que alguns apontamentos sejam destacados.

De pronto, o texto aprovado informa que, embora a OMPI não permita a proteção da propriedade intelectual dos recursos naturais ou genéticos em si, invenções desenvolvidas com base neles podem, na maioria das vezes, ser protegidas por uma patente. Recursos genéticos, nesse sentido, são aqueles que têm fonte, por exemplo, em plantas e determinados animais, que têm suas técnicas de manipulação e extração das mais variadas propriedades, conhecidas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais, que lograram conservar e transmitir suas aptidões científicas e tecnológicas ao longo de gerações.

A base do tratado consiste em exigir que as gigantes indústrias farmacêuticas e de cosméticos, por exemplo, sejam obrigadas a rastrear os recursos genéticos usados em suas pesquisas e nos resultados obtidos, divulgando seu país de origem, a fonte destes recursos e quais povos indígenas ou comunidades tradicionais forneceram o conhecimento originário utilizado nessa cadeia produtiva.

Dessa forma, o tratado objetiva gerar um sistema de propriedade intelectual que, ao mesmo tempo, incentiva a inovação e a evolução científica, num formato mais inclusivo. Tal inclusão ocorreria partindo da lógica segundo a qual as invenções resultantes dessas pesquisa, desde que informem a origem de sua exploração (humana e ambiental), fortaleceria a conservação da biodiversidade, e das próprias comunidades tradicionais e povos indígenas, ao instrumentalizar a inclusão desses grupos na divisão dos benefícios econômicos derivados de patentes que utilizam seus saberes e costumes. Ao final, o tratado faz constar expressamente, contudo, que seus efeitos não são retroativos, mas aplicados, somente, a explorações futuras.

Exatamente como os benefícios econômicos, derivados da apropriação de conhecimentos originários pelas indústrias, chegará às populações que compartilharam as informações essenciais para o desenvolvimento de novos produtos, não ganhou espaço claro no tratado.

Ou seja, como povos indígenas e comunidades tradicionais serão efetivamente recompensados financeiramente por terem todos os seus conhecimentos, desenvolvido durante séculos de pesquisas e experiências tradicionais, utilizados por indústrias que já lucram (e continuarão a lucrar imensamente) em função da apropriação de tecnologias tradicionais e originárias, não está claro. Sabemos, no entanto, que tal apropriação, ao ser patenteada, deverá, agora, ser rastreada, e informar suas origens geográficas e culturais.

Sabemos, também, que todas as apropriações que já foram efetuada até o início do vigor deste tratado, não serão por ele atingidas. Ao que parece, o tratado preocupa-se mais com a facilitação da obtenção de informações por parte da indústria e com a ampliação do acesso a tais informações, do que com a manutenção da existência digna dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. É um tratado de viés preponderantemente econômico, com pinceladas humanitárias.

Trazendo a questão para o cenário brasileiro, é difícil não comparar a cláusula de não retroatividade do tratado da OMPI, com a previsão do texto da Lei 14.701/23 (marco temporal), que limita a demarcação de terras indígenas apenas a partir da data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988). Tal limitação, amplamente combatida por diversas representações de segmentos dos povos indígenas, sobretudo a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), é apenas um dos (enormes) obstáculos, dentre tantos, à demarcação de terras indígenas no Brasil, muitos deles potencializados pela Lei 14.701/23.

A coincidência normativa-comportamental é sintomática. Afinal, o Brasil foi ator fundamental e especialmente ativo nos debates, na elaboração e na aprovação do tratado da OMPI. No mesmo sentido, nosso Poder Legislativo, majoritariamente comemora e enaltece o texto da Lei 14.701/23.

Evidentemente que compreende-se a diferença de intenções e o nível de complexidade das duas instituições, assim como os distintos históricos político-sociais, de pautas e de modos de atuação dos personagens responsáveis pelas aprovações dos, igualmente distintos, atos normativos. Contudo, seria irresponsável não notar que, em ambos os casos, os povos indígenas e as comunidades tradicionais são mantidos e um plano inferior, recebendo migalhas de uma sociedade que, perversamente, continua trilhando o mesmo caminho de eliminação, exclusão e exploração dessas populações, iniciado quando estas terras, que hoje chamamos de Brasil, foram invadidas.

Nesse sentido somos uma nação que insiste em não reconhecer nossas culturas originárias, em todas as suas possibilidades. Para citar a área na qual atuo, nossos cursos de Direito, por exemplo, muito pouco estudam (ou ensinam) as culturas jurídicas dos povos indígenas, seus sistemas normativos e costumeiros, conteúdos que, certamente, poderiam enriquecer nosso atual ordenamento jurídico, que opta, no entanto, por seguir sendo colonizado pelo Direito europeu.

Finalmente, e pedindo licença para concluir com uma adaptação poética, também em “Brasileirinho”, Maria Bethânia canta letra de Caetano Veloso, convocando a purificar o Subaé e mandar os malditos embora. Em um nível muito mais amplo, é urgente que esse movimento ocorra efetivamente, que passemos a enxergar o Cocar como Coroa, ou continuaremos vivendo no horror de um progresso vazio[2].

Salve as Folhas!

[1] Escrita por Gerônimo Santana Duarte e Ildásio Santana Duarte.

[2] Purificar o Subaé, escrita por Caetano Veloso, 1981.