Novas regras de transporte rodoviário de cargas ainda geram insegurança jurídica

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Em 19 de junho de 2023 foi publicada a Lei 14.599/2023, a qual promoveu significativas mudanças na Lei 11.442/07 (sobre transporte rodoviário de cargas) em relação aos seguros.

A nova lei é fruto da MP 1153/2022, sobre a qual teci críticas oportunamente em artigo neste JOTA, especialmente em razão da sua inconstitucionalidade formal (por não vislumbrar urgência que justificasse a edição do tema via MP), além da impropriedade material com que o tema foi normatizado pelo Poder Executivo, evidentemente sem análise aprofundada em relação aos seus efeitos no mercado. Contudo, após a submissão da MP ao Congresso Nacional e após severas alterações durante todo o processo legislativo, a MP foi convertida em lei.

A nova lei promove mudanças no art. 13 da Lei 11.442/07, não só para alterar os seguros obrigatórios previstos, mas também em relação à dinâmica de contratação na relação embarcador versus transportador, dispondo que:

Art. 13. São de contratação obrigatória dos transportadores, prestadores do serviço de transporte rodoviário de cargas, os seguros de: I – Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga (RCTR-C), para cobertura de perdas ou danos causados à carga transportada em consequência de acidentes com o veículo transportador, decorrentes de colisão, de abalroamento, de tombamento, de capotamento, de incêndio ou de explosão; II – Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário por Desaparecimento de Carga (RC-DC), para cobertura de roubo, de furto simples ou qualificado, de apropriação indébita, de estelionato e de extorsão simples ou mediante sequestro sobrevindos à carga durante o transporte; e III – Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V), para cobertura de danos corporais e materiais causados a terceiros pelo veículo automotor utilizado no transporte rodoviário de cargas.      

A inovação mais controversa, no entanto, fica com a inserção do art. 13-B, o qual prevê que:

Art. 13-B. Ficam os embarcadores, as empresas de transporte e as cooperativas de transporte, sob qualquer pretexto, forma ou modalidade, impedidos de descontar do valor do frete do TAC (Transportador Autônomo de Cargas), ou de seu equiparado, valores referentes a taxa administrativa e seguros de qualquer natureza, sob pena de terem que indenizar ao TAC o valor referente a 2 (duas) vezes o valor do frete contratado.

Até a promulgação da nova lei, a legislação estabelecia a obrigatoriedade (Decreto-Lei 73/66 e Lei 11.442/07), de contratação de, pelo menos, dois seguros para o transporte rodoviário de carga: o seguro de cargas (ou Seguro Transporte Nacional – TN), de responsabilidade do embarcador, e o seguro de responsabilidade civil (RCTR-C, de responsabilidade do transportador.

Com a alteração, o Seguro Transporte Nacional (TN) deixa de ser obrigatório, passando a ser de contratação facultativa pelo embarcador, nos termos do §2º do art. 13, segundo o qual: “[o]s seguros previstos nos incisos I, II e III do caput deste artigo não excluem nem impossibilitam a contratação facultativa pelo transportador de outras coberturas para quaisquer perdas ou danos causados à carga transportada não contempladas nos referidos seguros.”

De outro lado, a lei estabelece a obrigatoriedade de contratação de não apenas o RCTR-C, mas também do RC-DC para cobertura por desaparecimento de carga em razão de crime (furto, apropriação indébita, estelionato, extorsão e sequestro) e do RC-V, para cobertura de danos corporais e materiais causados durante o transporte.

Além disso, a alteração no caput do artigo prevendo agora a “contratação obrigatória dos transportadores” dos seguros de responsabilidade civil retira do embarcador a prerrogativa de estipular os seguros obrigatórios em nome do transportador, a qual até a edição da MP era permitida nos termos no Comunicado SUROC/ANTT 001/2018 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e art. 33 da Resolução ANTT 4799/15.

Caso o transportador contratasse o RCTR-C, repassaria os custos ao embarcador sob rubrica de ad valorem e, caso embarcador assumisse a estipulação, entregaria ao transportador a carta de dispensa de direito de regresso (DDR) emitida pela seguradora. Pela DDR, a seguradora renunciaria ao direito de regresso contra o transportador, desde que cumpridas as condições operacionais previstas em Plano de Gerenciamento de Riscos (PGR).

Nesse ponto residem o principal contrassenso da lei e o problema prático criado pelo legislador: muitos dos embarcadores gozam de condições e prêmios mais atrativos sob apólices globais, cujas averbações garantem as operações de transporte. Como resultado, os embarcadores diminuíam seu custo operacional logístico e praticavam preços mais competitivos e, em contrapartida, assumiam a contratação de apólices por período estendido (um, dois, três anos ou mais).

Entretanto, como a Lei 14.599 não concedeu vacatio legis (art. 23), resta a dúvida de como ficam as apólices emitidas anteriormente à entrada em vigor da MP que a originou: permanecem válidas as apólices de estipulação e as DDRs já emitidas até a expiração da sua vigência ou devem os embarcadores, desde já, pagar o ad valorem aos seus transportadores e arcar com a duplicidade de coberturas?

A Superintendência de Seguros Privados (Susep) tentou, sem sucesso, pacificar o tema no mercado securitário por meio do Ofício Circular 2/2023/DIR1/Susep, emitido em 23/10/2023. No ofício (item 1.1), a Susep esclarece que “[n]o que diz respeito à validade dos contratos firmados antes da publicação da Lei nº 14.599, de 2023, esclarecemos que os mesmos não são atingidos pela inovação jurídica. Assim sendo, não se verifica infração ao ordenamento jurídico vigente o prosseguimento do curso normal de tais apólices, até o fim de vigência contratualmente estabelecido entre as partes”.

Entretanto, de forma paradoxal, o ofício dispõe no item 1.5 que “[a]inda que a regulamentação infra legal possa vir a elucidar alguns pontos eventualmente necessários e a editar complementos importantes, reforçamos que embarcadores, transportadores, sociedades seguradoras, corretores de seguros, bem como qualquer outro envolvido na operação dos seguros de que trata o art. 13 da Lei nº 11.442, de 2007, com a redação dada pela Lei nº 14.599, de 2023, deverão observar e cumprir as novas determinações legais, independentemente da revisão da regulamentação. Esclarecemos ainda, que em caso de divergência entre o texto da regulamentação infra legal vigente e o texto da Lei nº 14.599, de 2023, deverão prevalecer os comandos legais para todos os fins, considerando a hierarquia das normas”.

Assim, se por um lado a Susep prega a validade das apólices de estipulação e DDRs emitidas anteriormente à entrada em vigor da nova lei entre seguradoras e embarcadores, por outro, não disciplina (e nem poderia, dados o seu alcance regulatório e a hierarquia das normas) as relações entre embarcador e transportador ou entre transportador e TACs e equiparados subcontratados, para os quais, nos termos do art. 23 da nova lei, o novo regramento tem efeito imediato.

Em face do alvoroço causado no mercado com a promulgação da lei, a questão foi suscitada em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7579) movida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em 21 de dezembro de 2023 perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Na ADI, a CNI pede a declaração de inconstitucionalidade da nova norma, sob o argumento de vício formal (por falta do requisito da urgência quando da edição da MP), além da ofensa ao princípio constitucional da livre iniciativa, argumentos que também já abordei aqui no passado quando da edição da MP.

Entretanto, até que o STF se pronuncie a respeito e a despeito da irracionalidade (ou estupidez) da nova regra sem o estabelecimento de um período de transição, da impropriedade técnica, da falta de análise de impacto regulatório e apesar dos custos envolvidos, entendo que o mais acertado, sob um ponto de vista de gerenciamento de riscos, é a adaptação imediata ao conteúdo da nova lei, sob pena de, ao não pagar ao transportador o ad valorem nos seus termos, promover um significativo passivo contingente em razão das indenizações de duas vezes o valor da frete (art. 13-B da Lei 11.442/07) além de autuações da ANTT de até R$ 10,5 mil (art. 21) para cada embarque cujo seguro não seja adequadamente averbado nos termos da nova lei.