Novas fronteiras do ainda essencial direito econômico

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Há dois anos, estreamos na coluna Elas no JOTA com o texto “Por um direito econômico com mulheres e para mulheres — e além delas”. Naquele momento, inaugurávamos um espaço de reflexão comprometido com uma visão plural, crítica e inclusiva do direito econômico, um campo que, muitas vezes, tem sido marcado pela ausência de mulheres nas carreiras públicas, na docência e nos quadros de comando de escritórios de advocacia e dos órgãos reguladores da concorrência.

Desde então, exploramos uma ampla gama de temas, ilustrando a versatilidade do direito econômico: do papel das políticas públicas e da regulação econômica às interfaces entre gênero, direito ao cuidado e economia política, passando por discussões sobre ambientes alimentares, plataformas digitais e defesa da concorrência e a relação entre integridade, estado e mercado.

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Ao longo desse percurso, buscamos contribuir para ampliar o olhar sobre o que significa fazer e pensar o direito econômico no Brasil de hoje, em diálogo constante com os desafios contemporâneos e com a diversidade de sujeitos e experiências que o compõem.

Agora, nesta coluna de despedida, gostaríamos de propor um olhar adiante. Apresentamos aqui alguns temas que consideramos relevantes agendas de pesquisa e de fronteira para o direito econômico, questões que, acreditamos, merecem atenção de quem deseja construir um campo mais crítico, inclusivo e transformador. 

Direito econômico em transformação: um olhar adiante

Entre as agendas emergentes do direito econômico, o debate sobre a relação entre defesa da concorrência e democracia tem se mostrado particularmente relevante. O avanço das grandes plataformas digitais, a concentração de poder econômico em poucos conglomerados e o enfraquecimento de espaços públicos de deliberação recolocam a concorrência como um tema central à própria vitalidade democrática.

Como têm apontado Lina Khan[1] e Tim Wu[2], o poder econômico concentrado tende a se converter em poder político, distorcendo processos decisórios, capturando instituições e restringindo a pluralidade de vozes.

Essa discussão nos convida a repensar o direito econômico a partir da premissa de que as instituições jurídicas não são neutras, mas configuram as próprias condições de poder e de desigualdade na economia. A agenda contemporânea, portanto, desafia o campo a ir além da lógica da eficiência e incorporar valores democráticos, distributivos e de justiça social como parte de sua racionalidade. Isso implica compreender a política de concorrência como um instrumento de reorganização do poder econômico, capaz de sustentar mercados abertos, diversas formas de propriedade e participação efetiva de múltiplos agentes[3].

A partir dessa perspectiva, emergem diversas frentes de pesquisa que merecem maior atenção. Além da regulação das plataformas digitais, é fundamental investigar o papel da política de concorrência em setores historicamente concentrados, como o financeiro, o agroalimentar e o farmacêutico, e seus efeitos distributivos.

No caso das plataformas digitais, o debate é especialmente revelador do papel do direito econômico na conformação dos mercados. A estrutura e o poder dessas empresas não resultam apenas de dinâmicas tecnológicas, mas de escolhas jurídicas que definem fluxos de dados, acesso a infraestruturas, responsabilidade e formas de competição. O direito econômico, nesse contexto, deve ser compreendido como instrumento de ordenação institucional da economia digital.

O Brasil começa a construir uma arquitetura regulatória própria nesse campo, e essa agenda tende a ganhar ainda mais centralidade nos próximos anos. A aprovação do ECA Digital (Lei 15.211/2015) representou um marco na proteção de direitos de crianças e adolescentes e na definição de deveres para as plataformas.

Já o PL 4675/2025 propõe atualizar a Lei de Defesa da Concorrência, introduzindo instrumentos voltados a agentes econômicos de relevância sistêmica e equipando o Cade para lidar com ecossistemas digitais baseados em dados, efeitos de rede e integração entre serviços.

São instrumentos de direito econômico que fortalecem a capacidade do Estado brasileiro de atuar de forma prospectiva na organização da economia digital. Ao mesmo tempo, a consolidação dessa agenda coloca o campo diante de novas fronteiras analíticas e institucionais, relacionadas à reorganização do poder econômico, à formação de mercados baseados em dados e inteligência artificial e à necessidade de repensar os instrumentos jurídicos que moldam a inovação e a concorrência nesse novo ambiente.

O direito econômico, analisado em seu contexto contemporâneo, também possui o desafio de desenvolver teoria e ferramental para lidar com a concentração econômica mapeada no Brasil e no mundo. Segundo a Oxfam, em 10 anos, o mundo poderá conhecer o seu primeiro trilionário, mas, se manter nesse ritmo, demorará mais 230 anos para erradicar a pobreza extrema.

Na última década, os estudos sobre desigualdade ganharam novo fôlego para mapear e analisar criticamente as instituições, práticas e políticas que são determinantes não só para a criação da riqueza, mas também para sua concentração, reprodução e preservação. O direito em suas relações de economia política, são um campo fértil para novos estudos e práticas que observem a mútua constituição entre interesses econômicos, interesses políticos e a arquitetura institucional da concentração da riqueza.

Também ganham relevo estudos sobre a interface entre antitruste e política industrial, em especial no contexto da transição ecológica e tecnológica.

Nessa linha, como destacamos nesta coluna, a alimentação torna-se um tema crucial para o direito econômico e caminho essencial para a transição rumo a formas de produção e consumo mais sustentáveis[4]. O Brasil tem sido palco de grandes contradições na agenda da segurança alimentar: o país que se coloca como um dos maiores exportadores globais de alimentos sofreu com a volta da fome em anos recentes[5], e assistiu a progressiva substituição de alimentos in natura por ultraprocessados[6], combinada ao uso massivo de agrotóxicos pela indústria.

Mais do que compreender as mudanças nos arranjos jurídico-institucionais que impulsionaram (ou não) a implementação de políticas públicas capazes de tirar o Brasil do Mapa da Fome[7], é papel do direito econômico investigar as normas, atores e interesses envolvidos na regulação da indústria de ultraprocessados e do setor agroalimentar, de forma a garantir o combate à má nutrição e a promoção da saúde pública.

A agenda de pesquisa voltada à compreensão das regras jurídicas sobre acesso à terra urbana e rural, publicidade de alimentos, rotulagem nutricional frontal, tributação, compras públicas de alimentos entre outras normas jurídicas, é central para garantir a qualidade e quantidade dos alimentos que chegam à mesa da população.

Cabe ao direito econômico reconhecer as determinantes comerciais e jurídicas da saúde pública[8], assegurando o equilíbrio entre liberdade econômica e direitos fundamentais em um dos principais setores da economia brasileira.

Por fim, a análise empírica do enforcement das autoridades de concorrência e da captura regulatória abre caminho para compreender de que modo o direito pode, ou não, contribuir para o fortalecimento de uma democracia econômica substantiva.

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Conclusão

Ao reunir estes temas, buscamos apresentar uma agenda que expressa a pluralidade e o dinamismo do direito econômico contemporâneo. Cada uma dessas frentes evidencia, a seu modo, como o direito estrutura relações de poder e molda as condições de acesso, participação e bem-estar na vida econômica. Juntas, elas reforçam a necessidade de um campo comprometido com a redistribuição, a sustentabilidade e a democracia.

Encerramos este ciclo com a convicção de que pensar o direito econômico é também pensar os caminhos para uma sociedade mais justa, com o desejo de que este debate siga se expandindo, abrindo espaço para novas vozes e perspectivas.


[1] KHAN, Lina M. Amazon’s Antitrust Paradox. Yale Law Journal, v. 126, n. 3, 2017.

[2] WU, Tim. The Curse of Bigness: Antitrust in the New Gilded Age. New York: Columbia Global Reports, 2018.

[3] Uma referência relevante para essa lente que orienta uma nova visão sobre o Direito é a abordagem de Direito e Economia Política (Law and Political Economy – LPE). Para uma visão geral da abordagem LPE, ver: LAW AND POLITICAL ECONOMY PROJECT. The Law and Political Economy Manifesto. Yale Law School, 2017; PURDY, Jed; GREWAL, David; SANGAL, Amy Kapczynski; KAHN, Sabeel Rahman. Building a Law and Political Economy Framework: Beyond the Neoliberal Imagination. Yale Law Journal Forum, 2020.

[4] ABRAMOVAY, R., & FAVARETO, A. (Orgs.). (2025). Caminhos para a transição do sistema agroalimentar: desafios para o Brasil. São Paulo: Editora Senac. Acesso em 17 nov. 2025, disponível em https://ricardoabramovay.com/wp-content/uploads/2025/10/AbramovayFavareto_Introducao_Caminhos-para-a-transicao-do-sistema-agroalimentar-1.pdf

[5] De acordo com o II Inquérito sobre Segurança Alimentar, em 2022, 33.1 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar grave, caracterizada pela convivência com a fome (REDE PENSSAN, II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil. Fundação Friederich Ebert: Rede Penssan, 2022).

[6] MARTINS, Ana Paula Bortoletto et al. Increased contribution of ultra-processed food products in the Brazilian diet (1987-2009). Rev Saúde Pública 2013; 47:656-65; SWINBURN, Boyd et al. The global obesity pandemic: shaped by global drivers and local environments. Lancet 2011; 378:804-14; MONTEIRO, Carlos Augusto et al. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations; 2019.

[7] Conforme dados do  Relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025 – SOFI 2025  disponível no seguinte endereço eletrônico: https://www.fao.org/publications/fao-flagship-publications/the-state-of-food-security-and-nutrition-in-the-world/2025/

[8] GOSTIN, Lawrence et. al. The legal determinants of health: harnessing the power of law for global health and sustainable development. The Lancet. Vol. 393. May 4, 2019, p. 1857-1910; GILLMORE, Anna et. al. Determinantes comerciais da saúde – 1, The Lancet, Março, 2023.