A Lei 14.133/2021, ao reformular o regime jurídico das contratações públicas no Brasil, buscou consolidar um modelo mais racional, planejado e transparente. No entanto, certos institutos herdados da legislação anterior ainda enfrentam desafios de conformidade prática — entre eles, a adesão tardia às atas de registro de preços (ARPs), popularmente conhecida como “carona”.
Sob a égide da Lei 8.666/1993, a adesão a atas tornou-se, em muitos casos, um atalho institucional para contornar os deveres de planejamento e o próprio processo licitatório.
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A jurisprudência de alguns órgãos de controle,[1] somada à ausência de limites normativos objetivos, contribuiu para o surgimento da chamada “indústria da carona”: contratações replicadas em larga escala, privilegiando um único fornecedor, sem vinculação direta com a necessidade real, o estudo técnico ou a realidade orçamentária do órgão aderente — especialmente nas esferas municipais.
A nova lei buscou enfrentar esse cenário. Nos artigos 82 a 86, foi estabelecido um marco regulatório mais detalhado para o Sistema de Registro de Preços (SRP), com ênfase na governança, na limitação das adesões e na responsabilização dos envolvidos. Ainda assim, observa-se a permanência de práticas herdadas, que ignoram os avanços legais e tensionam os princípios de eficiência, economicidade e planejamento que permeiam o novo regime.
Esse contexto certamente motivou a recente Nota Recomendatória Conjunta 1/2025, publicada por entidades como a Atricon, o IRB, o CNPTC e a Audicon. A nota propõe diretrizes concretas para que os Tribunais de Contas intensifiquem a fiscalização das adesões a ARPs, reconhecendo o risco sistêmico que a prática indiscriminada e descontrolada ainda representa.
O documento ainda explicita a necessidade de instrução robusta, controle de limites quantitativos, justificativa de vantajosidade e ampla transparência no uso da “carona”.
É preciso destacar que a adesão, no modelo da nova lei, não é mecanismo ordinário de contratação, mas medida excepcional, a ser justificada com base em interesse público imediato e vantajoso. O artigo 86, por exemplo, determina que a adesão depende de previsão expressa no edital ou na ata, consulta ao órgão gerenciador e ao fornecedor, além do respeito a limites quantitativos rígidos, sob pena de burla ao certame original e comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Contudo, a experiência revela que a mudança normativa, por si só, não é suficiente para reverter culturas institucionais consolidadas. Muitos agentes públicos continuam a ver na “carona” um expediente prático para suprir demandas emergenciais ou contornar o processo burocrático da licitação. Isso compromete o sentido do planejamento — pilar essencial da nova lei — e tende a mascarar o descontrole orçamentário, a padronização forçada de objetos e a ausência de vínculo com a real necessidade do órgão aderente.
A Nota Recomendatória 1/2025 é, portanto, uma iniciativa relevante, mas que precisa ser acompanhada de medidas concretas em todas as linhas de defesa previstas na nova lei.
A adesão deve ser submetida a controle jurídico prévio, em conformidade com o que preconiza o artigo 53, § 4º da Lei 14.133/2021, e fundamentada em estudo técnico próprio em que se demonstre a real necessidade do órgão ou entidade, não se bastando pela simples replicação do termo de referência do órgão gerenciador.
É igualmente indispensável garantir a rastreabilidade de tal processo no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), com indicação clara de que se trata de adesão a ARP, conforme sugerido na própria nota.
Urge ainda discutir a criação de mecanismos tecnológicos de controle nacional das adesões, que permitam ao gestor público e aos órgãos de controle identificar o histórico da ata, os quantitativos consumidos, as solicitações pendentes e o impacto orçamentário das adesões.
Conclui-se, portanto, que a adesão a atas de registro de preços, embora prevista como exceção dentro de um sistema estruturado de governança contratual, ainda se presta, na prática, a servir como um atalho institucional para suprir deficiências de planejamento, seja na esfera orçamentária ou de contratações em si.
A resposta normativa da Lei 14.133/2021 e as diretrizes propostas por entidades de controle são avanços significativos, mas insuficientes se não acompanhados de mudança de postura por parte dos gestores públicos.
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É necessário reafirmar que a contratação pública eficiente não se faz com soluções genéricas e replicáveis sem critério — e que o velho costume da “carona fácil”, se mantido, seguirá colocando em risco os pilares da nova legislação.
Afinal, enquanto persistirem práticas herdadas do passado, a nova lei seguirá enfrentando velhos atalhos que mais atraem problemas do que solução efetiva aos problemas do cotidiano administrativo.
[1] A exemplo do TCU, que, impondo certas condições, entendia ser possível a adesão a Ata de Registro de Preços por órgão ou entidade não participante do SRP (por todos, vide Acórdão nº 1.202/2014 – Plenário. Em sentido contrário, o TCE/SP pacificou o seu entendimento pela vedação à figura do “carona”, excetuadas hipótese admitidas em lei federal (vide Súmula n.º 33).