A implementação da Lei 14.133/2021 tem reavivado debates a respeito de normas gerais de licitação e contratação, previstas na Constituição (aqui, aqui e aqui). Um movimento ainda pouco comentado é que a tecnologia parece estar tornando essas normas ainda mais gerais.
A Constituição de 1988 previu em seu art. 22, XXVII, que caberia privativamente à União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação”. É sabido que nessas três décadas desde a promulgação da Lei 8.666/93, esta se revelou muito mais do que uma norma geral, descendo a minúcias, prazos e parâmetros estritos do que é permitido ou não. A Lei 14.133/21, sem questionar a estrutura da lei anterior, parece vir acompanhada de mecanismos que aprofundam esse viés.
Nesse sentido, além do Portal Nacional de Compras Públicas, que merece um artigo próprio, o Portal de Compras.gov.br padroniza diversos documentos previstos na lei, como Estudo Técnico Preliminar, Plano de Contratações, Termo de Referência.
Assim, ao utilizar o Portal de Compras citado para elaborar um Termo de Referência, por exemplo, o servidor responsável já recebe um modelo de tudo que deve conter tal documento, citando os artigos legais pertinentes.
Não há dúvida de que a padronização de documentos e sistemas deve facilitar a atuação dos órgãos de controle, ao mesmo tempo que auxilia entes com menor estrutura, agora obrigados a se adequar a uma lei muito mais exigente que a anterior, em termos de governança.
Ocorre que o encantamento com a tecnologia envolvida traz o risco de fazê-la prevalecer sobre o que prevê a Constituição, no caso das empresas estatais.
Isso porque o citado art. 22, XXVII da Constituição distingue entre as normas gerais de licitação da administração direta, autárquica e fundacional, obedecido o art. 37, XXI, daquelas das empresas estatais, nos termos do art. 173, §1º, III. Isso o que se refletiu na Lei 13.303/16 e na própria Lei 14.133/21, cujo art. 1º, §1º, reconhece sua não aplicação para as empresas estatais e suas subsidiárias, regidas pela primeira (com exceções pontuais).
Ocorre que, em âmbito federal, via Comunicado 01/2023, da Secretaria de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, e no Estado de São Paulo, via Ofício Circular do Conselho de Defesa dos Capitais do Estado (Codec) 007/2023, as empresas estatais, “no que couber”, devem se valer do Sistemas Compras.gov.br do governo federal, nos módulos de licitação, planejamento, pesquisa de preços e demais.
É preciso cuidado, assim, para que a aparente aproximação das legislações não leve à perda de autonomia das estatais, cujos Regulamentos Internos suscitam um grau de liberdade muito maior e interpretações diferentes daquelas do regime geral da Administração Direta, sob pena de a tecnologia do Portal de Compras prevalecer sobre o que prevê a própria Constituição.