Nova lei da pesquisa com seres humanos e os dispositivos médicos experimentais

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Em 28 de maio de 2024, foi sancionada a Lei 14.874. Publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte, ela versa sobre princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas com seres humanos por instituições públicas ou privadas e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Produzirá efeitos após decorridos 90 dias de sua publicação oficial. Além de servir para a assimilação, o período de vacatio legis tem como objetivo evoluir com a regulamentação da nova lei.

Para começar, o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, segregado em: (i) instância nacional de ética em pesquisa, e; (ii) instância de análise ética em pesquisa, representada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), precisa ser instituído por meio de ato do Poder Executivo, ou seja, decreto (art. 5º). São mais de 30 referências a “regulamento” na lei que não necessariamente dar-se-ão por meio do decreto.

É que compete à instância nacional de ética em pesquisa editar normas regulamentadoras sobre ética em pesquisa (art. 8º, I). Relativamente ao processo de análise ética em pesquisa, a Lei prevê que todos os documentos requisitados pelo CEP deverão estar previstos “em ato do Poder Executivo, em regulamento ou no regramento do próprio CEP e ter pertinência com a matéria analisada” (art. 14, § 8º).

A assimilação pode ser no sentido de se definir se permanecerão vigentes as Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que versam sobre a pesquisa clínica com seres humanos. É provável que permaneçam vigentes, tendo em vista a recente abertura de consulta pública para revisão da RDC/Anvisa 9/2015, que versa sobre o regulamento para a condução de ensaios clínicos visando o registro de medicamentos no Brasil.

Espera-se que a RDC/Anvisa 38/2013, que aprova o regulamento para os programas de acesso expandido, uso compassivo e fornecimento de medicamento pós-estudo, também seja atualizada à luz da nova lei, quanto aos novos requisitos para a continuidade do tratamento pós-ensaio clínico, e assim por diante.

Relativamente às resoluções publicadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), por exemplo, a Resolução 466/2012, que aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e a Resolução 510/2016, que trata das normas aplicáveis a pesquisas em ciências humanas e sociais, muito provavelmente serão caducadas assim que a Lei 14.874/24 entrar em vigor, no final de agosto de 2024, embora a lei não as revoga expressamente.

É que, segundo a Lei (art. 2º, XXVI), a instância nacional de ética em pesquisa, colegiado interdisciplinar e independente, passa a ser integrante do Ministério da Saúde (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde – Sectics), e não mais ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)

O presente artigo de opinião representa a continuação de uma série em que a autora se debruçará sobre o “Direito da Pesquisa com Seres Humanos”, que é transversal e se conecta com outras áreas do Direito e do conhecimento. Aqui, o objetivo é fazer uma breve reflexão sobre o conceito de “dispositivo médico” trazido pela Lei, que reforça o conceito da RDC/Anvisa 751/2022, que trata da classificação de risco, os regimes de notificação e de registro, e os requisitos de rotulagem e instruções de uso de dispositivos médicos. Sem esquecer da RDC/Anvisa 657/2022, que versa sobre a regularização de software como dispositivo médico (Software as a Medical DeviceSaMD).

Em seguida, uma breve referência à pesquisa clínica intitulada Prime (Precise Robotically Implanted Brain-Computer Interface) patrocinada e conduzida pela empresa norte-americana de neurotecnologia Neuralink, que tem desenvolvido tecnologia que permite uma comunicação bidirecional de ultra precisão entre dispositivos externos implantáveis e o cérebro[1], e que promete integrar inteligência artificial.

Trata-se de tecnologia inovadora com impactos sociais, éticos, legais e práticos, tanto positivos quanto negativos. São questões bioéticas, de responsabilidade, acessibilidade, equidade, tratamento irregular e inseguro de dados pessoais sensíveis como os de saúde e dados neurais – desafios para os direitos humanos. A Prime é uma pesquisa clínica de dispositivo médico implantável experimental voltado para o sistema de interface cérebro-computador implantável e sem fio. Tem como objetivo avaliar a segurança do implante e do robô cirúrgico, bem como verificar a funcionalidade inicial do sistema para permitir, inicialmente, que pessoas com tetraplegia controlem dispositivos externos com seus pensamentos[2].

A Lei 14.874/24 apresenta um conceito de “dispositivo médico” com escopo robusto. Ou seja, “qualquer instrumento, aparelho, equipamento, implante, dispositivo para diagnóstico in vitro, software, material ou outro artigo, destinado pelo fabricante a ser usado, isolada ou conjuntamente, em seres humanos, para algum dos seguintes propósitos médicos (e não “funcionalidades”):

a) diagnóstico, prevenção, monitoramento, tratamento, atenuação ou alívio de uma doença;
b) diagnóstico, monitoramento, tratamento ou reparação de uma lesão ou deficiência;
c) investigação, substituição, alteração da anatomia ou de um estado ou processo fisiológico ou patológico;
d) suporte ou sustentação à vida;
e) controle ou apoio à concepção;
f) fornecimento de informações por meio de exame in vitro de amostras provenientes do corpo humano, incluindo doações de órgãos e tecidos;
g) exercício de ação não alcançável no corpo humano por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, mas que pode ser auxiliado na sua ação pretendida por tais meios”.

Comparado ao conceito da RDC 751/2022, a lei inclui um ponto adicional que explica a ação não alcançável por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, além de mencionar “atenuação” de uma doença explicitamente.

Caso a Neuralink optar por conduzir a pesquisa clínica Prime no Brasil, como já anunciou o plano para estender o estudo multicêntrico para o Reino Unido e o Canadá[3], terá que se submeter à normativa brasileira imperativa e aplicável à condução de ensaio clínico com “dispositivo médico implantável experimental”: a Constituição Federal, a Lei 14.874/24, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Código Civil, normas sanitárias e éticas.

Se multicêntrica, conduzida em mais de um centro de pesquisa, a análise ética da Prime será realizada no país por um único CEP, preferencialmente vinculado ao centro coordenador, que emitirá o parecer com a sua decisão e notificará os CEPs dos demais centros sobre a sua decisão.

A nova lei é um importante avanço, mas a sua publicação no Diário Oficial, por si só, não é um milagre para o Brasil alcançar os investimentos econômicos e inovações prometidas. Ela ainda precisará ser regulamentada de forma cuidadosa e, ao mesmo tempo, célere, em observância das demais normas imperativas brasileiras, até para evitar inseguranças e judicialização. “Célere” porque é preferível que a regulamentação da nova lei ocorra durante o período de vacatio legis. Caso contrário, ao entrar em vigor, o risco é de se tornar uma lei “desdentada”, que gera inseguranças, inclusive, para o patrocinador, por exemplo, a Neuralink.

[1] Disponível online em: https://neuralink.com/ (acesso em 10 jun. 2024).

[2] Disponível online em: https://neuralink.com/ (acesso em 10 jun. 2024).

[3] Disponível online em: https://neuralink.com/patient-registry/us/ (acesso em 10 jun. 2024).