“Nunca se viu uma classe bilionária com tanto poder político.”
(Bernie Sanders, citado pelo relatório da Oxfam)
Para entender melhor o atual cenário socioeconômico é imperdível a leitura do novo relatório da Oxfam “Desigualdade S.A. Como o poder das grandes empresas divide o nosso mundo e a necessidade de uma nova era de ação pública”[1]. Trata-se de análise que mostra as correlações entre a desigualdade contemporânea e o que se chama de “nova era de poder monopolista” ou de “era dourada de divisão”.
O estudo inicia-se com o diagnóstico da extensão da desigualdade: desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram suas fortunas enquanto, no mesmo período, 60% da humanidade ficou mais pobre. De fato, os bilionários estão US$ 3,3 trilhões – ou 34% – mais ricos do que no início da década, com patrimônio que cresce 3 vezes mais do que a inflação.
De forma geral, os números mostram que o 1% mais rico do planeta detém 43% de todos os ativos financeiros globais. No caso brasileiro, o 0,01% mais rico possui 27% dos ativos financeiros, o 0,1% mais rico 43% e o 1% mais rico 63%, enquanto os 50% mais pobres têm apenas 2%. Ainda é preciso lembrar que, do ponto de vista global, a riqueza está concentrada no Norte e tem efeitos ainda mais nefastos sobre grupos vulneráveis, como mulheres, negros, dentre muitos outros.
Diante de um cenário em que a privação e a fome são uma realidade cotidiana para muita gente, o relatório estima que, no ritmo atual, seriam necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas é possível que se tenha o primeiro trilionário em 10 anos.
Para a Oxfam, a imensa e crescente concentração do poder das grandes empresas – 7 de cada 10 das maiores empresas do mundo têm bilionários como CEOs ou principais acionistas – vem permitindo um poder de monopólio em nível global que está exacerbando a desigualdade em toda a economia.
Mais do que isso, a análise da Oxfam ressalta que o atual poder de monopólio foi resultado das políticas públicas neoliberais, que acabaram tolerando as estratégias empresariais que desembocaram no atual resultado: retração do Estado em prol dos “livres mercados” e consequente omissão diante de fusões e aquisições, conluios em indústrias concentradas, abusos de propriedade intelectual, táticas de capitalismo de compadrio e expulsão do mercado de rivais e pequenas empresas.
A Oxfam também destaca que o problema da excessiva concentração empresarial tem sido potencializado pelas empresas de private equity, que usam seu acesso financeiro privilegiado para atuar como força monopolizadora em todos os setores. Aliás, as “big three” do setor – BlackRock, State Street e Vanguard – administram juntas cerca de US$ 20 trilhões em ativos de pessoas, cerca de um quinto de ativos sob algum tipo de gestão, o que aprofunda o poder de monopólio.
Além disso, aponta o relatório que “pesquisas de Harvard sustentam que o poder econômico desses fundos de investimentos está tão concentrado que ‘em um futuro próximo, cerca de 12 indivíduos terão poder, na prática, sobre a maioria das empresas de capital aberto dos Estados Unidos’, preocupações que já foram manifestadas pelo próprio fundador da Vanguard.”[2]
Dentre outras consequências preocupantes da financeirização de grandes empresas estão a exacerbação dos lucros imediatos em detrimento de qualquer objetivo de longo prazo e o desvio de investimentos produtivos. A isso se somam os efeitos tradicionais dos monopólios, que, ao gerarem escassez para elevar preços e aumentar lucros, redistribuem a renda e a riqueza de forma regressiva, drenando recursos de consumidores e trabalhadores para a elite econômica, com diversas consequências específicas, dentre as quais:
Aumento de preços aos consumidores;
Esmagamento dos trabalhadores por meio de diversas estratégias, dentre as quais a redução de salários;
Não pagamento de impostos;
Privatização de serviços públicos em benefício do lucro privado, com o risco de mercantilização e segregação do acesso a serviços vitais, aumentando a desigualdade;
Contribuição para o colapso climático;
Incentivos para a chamada “inflação dos vendedores”;
Limitação do acesso a bens e serviços fundamentais;
Criação de obstáculos para a inovação e o empreendedorismo.
Um dos principais resultados desse estado de coisas, reconhecido pelo próprio FMI, é que o poder monopolista está crescendo e contribuindo para o aumento das desigualdades. As margens das grandes empresas dispararam nas últimas décadas, possibilitando também colusões tácitas para elevar preços e aumentar margens desde 2021, o que acarretou enormes aumentos de preços em setores como o energético, o alimentar e o farmacêutico. Por outro lado, o FMI estima que o aumento do poder de monopólio é responsável por 76% da queda na participação da renda do trabalho na indústria dos Estados Unidos.
Segundo a Oxfam, uma das principais maneiras pelas quais o poder das grandes empresas aumenta a desigualdade é precisamente por meio de recompensas aos super-ricos e não aos trabalhadores, o que se operacionaliza em diversas frentes:
Utilização de diversas estratégias, como lobby, portas giratórias, associações setoriais, pesquisas e campanhas de relações públicas para promoção de leis e políticas trabalhistas que mantêm as atuais desigualdades;
Oposição a políticas trabalhistas que beneficiam trabalhadores, como o salário mínimo;
Reformas que prejudicam os trabalhadores e trazem inclusive retrocessos, como vem ocorrendo com a flexibilização de normas que proíbem o trabalho infantil e o trabalho forçado ou com a revogação de normas que garantem a saúde e a segurança dos trabalhadores;
Criação de dificuldades para a sindicalização.
Diante desse quadro, não surpreende que o relatório da Oxfam mostre a preocupante defasagem salarial observada em muitos países nas últimas décadas, destacando os estudos da OIT, segundo os quais, no ano de 2022, a distância entre o crescimento dos salários e a produtividade do trabalho em 52 países foi a mais elevada desde o início do século 21, sem que haja nenhuma iniciativa para a contenção de tal quadro.
Com efeito, o relatório aponta que “a nova análise da Oxfam sobre os dados da World Benchmarking Alliance para mais de 1.600 das maiores e mais influentes empresas em todo o mundo mostra que apenas 0,4% delas estão comprometidas publicamente com o pagamento de salários dignos a seus trabalhadores e apoiam isso em suas cadeias de valor”.[3]
Não é sem razão que a deterioração das condições de trabalho e dos direitos dos trabalhadores é um dos pontos chave para se turbinar a desigualdade, sendo este o motivo pelo qual “em 2022, a OIT alertou que a queda histórica nos salários reais poderia aumentar a desigualdade e fomentar a agitação social”.
Não obstante todos os efeitos nefastos da nova era de monopólios para os excluídos e para o próprio desempenho da economia como um todo, uma das razões pelas quais tem sido particularmente difícil enfrentar a desigualdade é precisamente o poder político acumulado pela grande elite econômica.
Para a Oxfam, esse é um ponto chave para compreender por que o problema dos super-ricos ultrapassa o fato de serem beneficiários de enormes lucros empresariais: além de dirigirem suas empresas estimulando a divisão entre os proprietários e o resto da sociedade, também são capazes de definir diretamente as economias em seu favor, influenciando as políticas públicas e as leis. Daí os estudos que demonstram que propostas políticas apoiadas pelos ricos têm maior probabilidade se serem implementadas.
Dessa maneira, uma das conclusões centrais do relatório é a de que “o poder e a influência dos super-ricos lhes permitiram reduzir a parcela da economia que vai para a maioria, aumentando exponencialmente a parte recebida pelos poucos donos do capital, que são predominantemente os mais ricos em todas as sociedades”.[4]
Consequentemente, o poder econômico descontrolado está contribuindo para a construção de uma verdadeira plutocracia, já que “os monopólios agem como governos, regulam como governos e competem com os governos pelo poder. Como advertiu o ex-presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, “a liberdade de uma democracia não está segura se o povo tolerar o crescimento do poder privado até um ponto em que este se torne mais forte do que o seu próprio Estado democrático”.[5]
Por meio de um verdadeiro exército de lobistas, as grandes empresas estão arrebatando as decisões políticas da esfera democrática, com efeitos perversos para toda a sociedade, até porque também investem pesadamente para influenciar a opinião pública em favor dos seus interesses.
Apesar do diagnóstico preocupante, o relatório entende que essa nova era de monopólio não é inevitável. Assim como foi o resultado de escolhas legislativas e políticas públicas, é possível reverter o quadro por meio das medidas adequadas, desde que se entenda que “um aumento radical da igualdade deve ser a prioridade mais urgente da humanidade”.[6]
Daí o relatório propor diversas possíveis soluções, dentre as quais:
Estabelecer metas e planos para a redução radical e rápida da desigualdade;
Implementar políticas antimonopolistas, rompendo monopólios privados já existentes e evitando o crescimento exagerado do poder empresarial;
Controlar o poder das grandes empresas por meio de medidas como a revitalização do Estado;
Garantir serviços públicos que reduzam a desigualdade, incluindo saúde, educação, assistência e segurança alimentar;
Investir em transporte, energia, habitação e outras infraestruturas de caráter público;
Empoderar trabalhadores e comunidade;
Elevar radicalmente os impostos sobre grandes empresas e indivíduos ricos, reduzindo as possibilidades de evasão, bem como avançando em uma tributação mais eficaz das grandes empresas, principalmente através de suas subsidiárias transfronteiriças;
Limitar a remuneração de CEOs;
Impedir ou limitar pagamentos de dividendos ou recompras de ações antes de salários dignos e justiça climática;
Incentivar a apoiar sindicatos;
Democratizar regras de comércio e patentes;
Fortalecer leis para justiça racial e de gênero, além de implementar medidas juridicamente vinculantes para a preservação de direitos humanos e ambientais sensíveis ao gênero;
No que diz respeito a se evitar os efeitos da concentração empresarial extrema, o relatório defende uma abordagem específica para cada país, a fim de se encontrar meios para bloquear fusões monopolísticas e reformar as regras de atos de concentração. O relatório também insiste no necessário incentivo a negócios que não valorizem apenas acionistas e a novas formas de gestão que privilegiem trabalhadores e comunidades locais, inclusive por meio do devido apoio financeiro.
Por mais que muitas dessas medidas possam ser controversas e ensejem diferentes graus e modalidades de implementação, fato é que o relatório da Oxfam aponta para aquele que deve ser o fio condutor de qualquer mudança estrutural: “os governos terão que redistribuir de forma radical o poder dos bilionários e das grandes empresas às pessoas comuns”. [7]
Apesar das dificuldades inerentes a tal proposta, ressalta a Oxfam que “um mundo igualitário é possível se os governos regularem e repensarem o setor privado de forma eficaz”.[8] Ao assim fazer, lança para todos nós o desafio de como encontrar soluções regulatórias adequadas para resolver o problema.
[1] https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/desigualdade-s-a/
[2] Op.cit., p. 31.
[3] Op.cit., p. 34.
[4] Op.cit., p. 24.
[5] Op.cit., p. 32.
[6] Op.cit., p. 48.
[7] Op.cit., p. 4.
[8] Op.cit., p. 4.